Crítica
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Sinopse
Um mergulho não racional nos estados íntimos de uma pessoa que transita entre corpos e cenários distintos.
Crítica
O curta-metragem animado Livro e Meio, dirigido por Giu Nishiyama e Pedro Nishi, propõe uma narrativa onírica atravessada por um mergulho nos níveis extensíveis do íntimo de alguém, para isso derrubando barreiras de realidade e gênero. O protagonismo é exercido por uma figura ora masculina, ora feminina. O desdobramentos das camadas dessa imersão acontecem a partir da leitura de um livro, cujo conteúdo é apresentado adiante no intuito de reforçar o clima de sonho. Realizado com uma técnica chamada rotoscopia, por meio da qual há filmagens de atores de carne e osso e o posterior processo de animação sobre o resultado capturado – mesma técnica de O Homem Duplo (2006), de Richard Linklater –, o filme tem um visual propenso a essa elucubração existencialista que aposta numa não linearidade para abarcar estados abstratos.
Como exemplo de sua fecunda linguagem, Livro e Meio sai do primeiríssimo plano de um olho destacado na escuridão para o rosto curioso de sua dona. Ela aparentemente se olha no espelho num movimento sintomático que vai imediatamente do simbólico ao comezinho. O desenrolar dessa cena aparentemente simples leva à exploração dos cenários que, então, podem ser entendidos em seu sentido mais evidente, como lugares nos quais a personagem habita momentaneamente, ou levados por uma compreensão lírica, como se fossem os corredores da paisagem interna da pessoa transfigurada à medida que avança. A presença de árvores no interior de uma casa anuncia uma transição ambiental permitida tão e somente por essa liberdade cultivada no curta-metragem como matéria-prima essencial ao devaneio com ares de investigação profunda e íntima.
A cerimônia do chá, num outro local rapidamente acessado, semelhante a um jardim japonês, acentua essa quebra de fluxo da realidade, para isso atrelando o simples (e reiterado) derramar da bebida numa xícara ao alagamento crescente dos espaços que circundam a protagonista. Há uma ideia de circularidade bem fundamentada em Livro e Meio, um périplo alimentado por esse eterno retorno a um espaço de reflexão. É como se a persona se fragmentasse e precisasse cumprir determinado protocolo dentro de suas próprias indagações e possibilidades a fim de reconhecer-se plenamente ou de saber, minimamente, de que locais, especialmente os metafóricos, são constituídos os recônditos de sua existência. É um filme muito bonito e poético. Os contornos instáveis do traço sublinham essa impossibilidade de mera explicação peremptória.
Livro e Meio examina essa relação menos antagônica, aqui mais complementar, entre a realidade e a fabulação, atrelando o hibridismo às vicissitudes da psique. Giu Nishiyama e Pedro Nishi promovem uma bem-vinda correlação entre forma e conteúdo, assim mimetizando por meio da técnica esses atravessamentos observados no decurso do curta-metragem. Sem uma trama propriamente dita, o todo é guiado pelo escrutínio de uma mente que vagueia sem amarras, corporificada em homem e/ou mulher. Sua singular fluidez não é condicionada por uma progressão narrativa tradicional, pois se apropria dessa oscilação entre camadas do consciente e do inconsciente para fazer um filme aberto à livre fruição, um experimento instigante e bonito.
(Filme assistido durante a 29ª edição do Cine Ceará)
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