Crítica
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Sinopse
A cidade parece pegar fogo. À noite, as ruas esvaziadas exalam o odor do apocalipse. Pinky está em fuga.
Crítica
Antes mesmo de compreender quem são os personagens, onde se encontram, por que fogem e em quem atiram; o espectador se depara com a estética surpreendente de Los Conductos (2020). A textura fortemente granulada provém da película em 16mm, o que também justifica a janela próxima do quadrado. Um tiro é revelado mais de uma vez, porém em mínimos fragmentos de ação que não esclarecem o todo: uma mão atira, um torso cai, uma mancha vermelha se abre na camisa branca. A câmera passeia por um longo túnel, sugerindo a fuga. Ao invés de filmar as cenas por sua ação principal, o diretor Camilo Restrepo prefere recorrer a sugestões indicativas: um semáforo passando do vermelho ao verde é indicado pelo reflexo da luz colorida nas plantas à beira da estrada. Na maior parte do tempo, as cenas são completamente escuras, com uma mínima parte iluminada representando o resto do conflito. O cineasta demonstra maior prazer em ocultar do que revelar ou ainda, em termos cinematográficos-maternos, em dar à luz.
A estranheza destas escolhas provoca um efeito fascinante. Talvez seja possível falar em um cinema metonímico, onde a parte representa o todo, em conjunção com um cinema metafórico, onde símbolos representam mais do que sua significação imediata. A paixão pelas sombras e pelos focos de luz fortíssimos, voluntariamente artificiais, aproxima o resultado da estetização digna de uma graphic novel. O retrato de uma gangue perigosa, que mata e rouba sem qualquer remorso, adquire ares surpreendentemente melancólicos pela escolha de retratar, durante 90% do tempo, apenas um personagem em cena, o bandido Pinky (Luis Felipe Lozano), que foge enquanto bola seus próprios planos de vingança. Ele descreve a sua situação dentro do grupo enquanto reflete sobre a condição de marginal, ou sobre o desapego pela própria vida e pela vida dos outros. Ele admira a cidade tanto quanto contempla o fruto de seus próprios crimes. Embora narre as relações com o Pai, líder do grupo, o fato de o vermos sempre sozinho sugere um afeto não necessariamente correspondido. Pouco tempo mais tarde, ele pensará em matar o Pai.
Por mais hipnóticas que sejam as escolhas imagéticas, pode-se questionar a adequação das mesmas à narrativa. A trama de Los Condutos jamais se encontra à altura de suas imagens, não possuindo a mesma potência, nem a mesma capacidade de provocação. Em determinadas cenas, o espectador pode se questionar quem de fato é Pinky ou Nuty, como surgiu a ideia do roubo de fios de cobre em relação à produção de camisetas, ou qual relação Pinky possui com Desquite. Estes relacionamentos humanos se encontram em segundo plano em relação ao modo de representá-los, despertando a sensação de que a trajetória clássica de crime e castigo sirva como desculpa para as imagens deslumbrantes dos dois homens na natureza ou conduzindo uma motocicleta, por exemplo. O poema “Elegia a Desquite” (1958), de Gonzalo Arango, no qual a narrativa foi baseada, carrega uma denúncia política evidente, citando Bolívar, Zapata e Fidel Castro. Ora, o filme colombiano se situa num cenário de opressão muito mais amplo e vago.
Mesmo assim, que seja apenas pela experiência estética ou pelo prazer das formas, o projeto fornece um farto banquete ao espectador. A edição, de responsabilidade do próprio diretor, está menos preocupada com a linearidade ou com relações de causa ou consequência do que com associações poéticas/simbólicas. O foco de uma lanterna de automóvel é associada à Lua, o fogo se funde no Sol, uma atração circular do parque de atrações se converte no centro circular de um ventilador. Às vezes, as associações ocorrem à distância: um bolo de fios de cobre dialoga com a bola avermelhada que Pinky lança pelos ares no final, e o rosto oculto do criminoso ganha uma “máscara” pela sombra de barras de ferro mais tarde. Restrepo pode ter se inspirado na montagem de atrações de Eisenstein, fortemente simbólica e impactante, produzindo um efeito que, devido à raridade de diálogos, reforça a ponte com o cinema mudo. Curiosamente, a seção “Encounters” do festival de Berlim, que busca determinar os novos rumos do cinema no século XXI, encontrou seu representante numa produção em 16mm, de montagem em estilo soviético. Talvez nossa capacidade de (re)invenção consista no resgate de linguagens pioneiras.
Seria igualmente possível ler Los Conductos enquanto forma de um novo Cinema Marginal, no qual a produção limitada (apenas dois personagens em cena, poucos cenários) se justifica pela opção de uma narrativa árida. As falas niilistas de Pinky (sugerindo que as pessoas dispostas a acreditarem em Deus estariam dispostas a acreditarem em qualquer coisa, e portanto a serem enganadas facilmente) também evocam o individualismo enquanto forma contemporânea de marginalidade. As raras cenas do ladrão entre latas de lixo, ou a bordo da caçamba de um caminhão de peças usadas corrobora a versão de pessoas descartadas, ou invisibilizadas socialmente. O discurso sobre a segregação nunca vai muito longe, uma vez que não há margem sem centro, e o filme evita a qualquer preço representar a ordem contra a qual o grupo se opõe. Curiosamente, este é o mesmo caso de outra produção colombiana recente, Monos (2019). Mesmo assim, há sugestões suficientes para inserir estes personagens arquetípicos numa configuração de opressão e de vingança, ainda que etérea, nostálgica e sugerida.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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