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Crítica


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Sinopse

Gregorio enfrenta desafios significativos ao tentar restaurar a irrigação em Rosillas, Bolívia. Nesse trajeto, confronta a apatia comunitária, corrupção e o poder da elite local.

Crítica

Gregorio (Fernando Arze Echalar) mora numa pequena comunidade rural da Bolívia. Ao que parece, desde pequeno esteve nessa área, mantendo o cultivo da terra como tradição familiar. No entanto, de que modo seguir vivendo do que a lavoura dá se a água não chega mais para irrigar a propriedade? Ele é um homem de poucas palavras, daqueles calejados pelos problemas característicos de uma localidade em transformação onde há mais passado que futuro. Gregorio internaliza essas dores ao ponto de sentir dificuldade para se expressar. O cineasta Alejandro Quiroga constrói o cenário de Los de Abajo explorando uma tendência comum do cinema das últimas décadas: a de apresentar contextos camponeses em que o avanço de certos conceitos coloca em xeque a continuidade das tradições. O protagonista trava uma luta inglória para tentar convencer os vizinhos a apoiar o projeto que pode trazer de volta a irrigação ao sítio de sua família, mas não tem sequer a habilidade social suficiente para convencer as pessoas de que é fundamental essa união. O que mais sobressai no começo do longa-metragem boliviano é justamente esse personagem principal, sobretudo a sua introspecção asfixiante combinada com a indignação mobilizadora. Pena que nem sempre o realizador consegue evoluir nos assuntos ou mesmo avançar no tratamento das questões humanas, como a frustração, os amores e as dores.

Los de Abajo é um filme de desenvolvimento lento, cujo ritmo peculiar propõe ao espectador uma experiência geralmente contemplativa. Em várias cenas Alejandro Quiroga coloca Gregório transitando pelo terreno irregular e ermo, transmitindo assim a sensação de abandono. Há um momento em que o protagonista se desloca pela paisagem desértica vestindo um paletó surrado e um boné vermelho, figurino semelhante ao que Harry Dean Stanton utiliza cruzando os desertos melancólicos no icônico Paris, Texas (1984), de Wim Wenders. A partir desse paralelo, podemos tentar estabelecer pontos em comum entre os filmes. Assim como na obra-prima dos anos 1980, aqui temos o pai vagando pelo cenário desolador, o filho que pode representar a inocência perdida e quiçá o abandono, além da esposa citada frequentemente por sua ausência. Porém, infelizmente, a analogia entre as produções fica por aí, ou seja, num nível bastante superficial, sendo mais a piscadela em busca de uma cumplicidade cinéfila. Gregório não é talhado como figura tão profundamente trágica, embora tenha todos os ingredientes para isso. O problema é a maneira como o realizador o conecta aos demais agentes da realidade indicativa, como quando insere na trama o capitalista interpretado por César Bordón, somente um borrão tipificado como vilão inescrupuloso capaz de desviar a água e com isso concentrar mais poder.

Além de Gregório, há o filho desejando ter um pião com o qual brincar nos intervalos das aulas e a professora que acaba de perder o pai mantenedor. Dois coadjuvantes interessantes pela maneira como, eles sim, são associados ao protagonista por meio da solidão e da desesperança. Em Los de Abajo, o cineasta perde oportunidades valiosas para fazer essa história ser mais do que um conto pesaroso a respeito do avanço desenfreado dos capitalistas sobre propriedades tradicionais que podem sumir se não houver consciência dos patrimônios em jogo. Alejandro Quiroga tem excelentes intenções e posicionamentos claros, mas perde a mão na hora de elaborar e articular as individualidades dentro de um painel mais amplo, histórica, cultural e economicamente falando. Ele poderia acentuar, por exemplo, a tragédia de Gregório como um homem sem perspectivas ao procurar no futuro um espaço para a preservação das tradições e dos modos de vida ameaçados. O realizador apenas sugere a desagregação comunitária como sintoma desse mundo individualista que perdeu valores em prol do bom e velho “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Tanto que a cena da votação dos vizinhos para aprovar ou desaprovar os requerimentos de Gregório não é carregada de um desalento pela falta de solidariedade. Como gesto, essa negativa do grupo tenderia a iluminar bem melhor o acúmulo de poder do capitalista.

Embora Los de Abajo tenha personagens interessantes inseridos num contexto exemplar dos nossos tempos de negligência com os bens imateriais, especialmente, de regiões tradicionais – muitas vezes em prol do discurso neoliberal do progresso a qualquer custo –, o filme deixa a desejar. E isso acontece especialmente porque Alejandro Quiroga não estabelece uma correlação suficientemente forte entre os poderes em choque nessa localidade decadente. Gregório poderia ser encarado como uma espécie de Don Quixote, ou seja, o lutador contra gigantes que os demais moradores da região preferem enxergar como inofensivos (ou convenientes) moinhos de vento. A batalha quixotesca dele poderia estar mais fortemente associada à melancolia do pai idoso, à consternação da professora que pensa seriamente em ir embora, às expectativas da criança, sempre em contraponto ao comportamento seboso do capitalista sem escrúpulos que espera os moradores esmorecerem para lucrar comprando propriedades desvalorizadas. Tudo isso está fragmentado no enredo, abordado de maneira muito dispersa. Falta ao filme mostrar que todos esses elementos são interligados e se retroalimentam. Falta um senso de unidade que conecte tudo como parte de um ecossistema perverso no qual o avanço da exploração nutre a miserabilidade e o apagamento. Alejandro Quiroga acaba pulverizando os dramas sobre a trama.

Filme visto no 2º Bonito CineSur em julho de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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