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Sinopse
Em Loucos por Cinema!, o jovem Paul Dédalus (alterego de Arnaud Desplechin) amadurece como cinéfilo. Memórias, ficção e descobertas se misturam num fluxo irrefreável de imagens.
Crítica
Filmes sobre cinema são fascinantes. Voltando um pouco no tempo, os espectadores puderam se tornar mais cúmplices dos realizadores quando as produções incorporaram a mitologia da Sétima Arte como elemento narrativo. Desse modo, os criadores começaram a pronunciar um amor que é também nosso. Loucos por Cinema! é ficção documental ou, seria melhor dizer, documentário ficcional? Não importa a ordem, na verdade. Nele, o cineasta francês Arnaud Desplechin faz um tributo pessoal ao seu meio de expressão, com o qual facilmente podemos nos identificar. Afinal de contas, por exemplo, quando utiliza um ator mirim para representar a sua primeira ida ao cinema, Desplechin desbloqueia as memórias dos nossos próprios debutes numa sala escura, diante da tela enorme em comunhão com desconhecidos. Então, há o apelo íntimo compartilhado, a euforia particular por assistir a algo que permanece como fragmento de realidade. Cenas que provocam sentimentos criam memórias e, por conseguinte, se consolidam no nosso legado afetivo. Pode parecer um papo meio delirante esse o de tentar enquadrar o cinema como algo muito além de um meio para contar histórias. Mas, ao dividir conosco afirmações e perguntas, Desplechin vira um investigador fascinado, o detetive que usa a câmera como espelho para se autoexaminar, com uma pegada meio antiquada, mas ainda assim bonita.
Arnaud Desplechin faz uma reflexão solta de vários aspectos do cinema. Ele pondera a respeito do contexto, do que significa estar numa sala apropriada para a reprodução de voyeurs que contemplam a tela atentamente. Nesse sentido, é bonita a cena do menino inaugurando a rua relação com o cinema, indignado ao ter de ir embora porque sua irmã está assustada demais para permanecer no local. Nesse trecho, o cineasta aponta duas coisas importantes: a primeira delas é a capacidade que os filmes têm de acessar lugares profundos e tocar em certos nervos – a menina não consegue permanecer ali porque o seu medo é provocado de maneira forte; a segunda é o encantamento do menino capaz de absorver o mesmíssimo medo que emana da tela, mas compreendendo que ele faz parte do reino imaginário. Aliás, isso se repete no episódio familiar diante da televisão, no qual nem a insistência do irmão caçula é capaz de fazer o pequeno Paul (Louis Birman), alterego de Desplechin, desgrudar o olhar. Nesse momento o que sobressai é a sedução, a enorme aptidão que o cinema tem de aliciar nossos sentidos. E o francês alterna essas pequenas dramatizações com trechos de obras-primas que certamente calam fundo em sua memória cinéfila, também recorrendo a entrevistas que reforçam essa bonita ideia de comunhão. Às vezes essas citações visuais são meros deslumbres, noutras viram mecanismos.
Loucos por Cinema! é uma homenagem repleta de indagações. Utilizando sem pudores as ferramentas documentais e ficcionais, Arnaud Desplechin atrela memória e cinema. É contagiante ver e ouvir a descrição entusiasmada de um personagem sobre os planos iniciais de Os Incompreendidos (1959) enquanto conferimos essa introdução de um dos expoentes da Nouvelle Vague francesa. É outro momento flagrante em que o realizador privilegia a partilha de um amor. Todo cinéfilo tem ao menos um filme que provoca esse tipo de euforia. Todo cinéfilo já se transformou, nem que seja por breves instantes, em um entusiasmado (às vezes inconveniente) tentando fazer seus interlocutores enxergarem um filme com os mesmos olhos de veneração. Todo cinéfilo já transbordou de paixão diante de uma citação que o torna um cúmplice ainda mais íntimo de algum realizador admirado. Todo cinéfilo chorou copiosamente diante de uma telona iluminada. Ou quase todo, como vemos nos depoimentos. Mas, para além dessa capacidade universal que o filme tem, ele celebra um tipo de exercício de cinefilia muito específico: o da sala de cinema. Ao indagar pessoas sobre as suas primeiras vezes no ambiente que as isola do mundo e propõe um mergulho, Desplechin está reafirmando que o assunto principal do tributo é a existência dos filmes, mas também a vivência em um espaço de exibição.
Uma das coisas mais pedantes que um crítico de cinema pode dizer é: “este filme não é para todo mundo”. O especialista não tem como tarefa determinar quem pode ou não assistir a A ou B. Oras, desde quando a função do crítico é prescrever filmes e advertir a respeito de possíveis contraindicações? Dito tudo isso, por suposição, Loucos por Cinema! tende a ser mais apreciado por um público cinéfilo. Isso a julgar pelas correlações entre as observações, a poesia e o material audiovisual. O filme deve ser estimulante e emotivo à fatia do público mais interessada na cultura cinematográfica. O chamado “espectador comum”, ou seja, aquele que gosta de filmes, mas não do cinema, pode considerar as elucubrações de Arnaud Desplechin vagas e labirínticas demais. De fato, o intelectualismo às vezes trava a emoção no filme e vice-versa. A convivência nem sempre é harmônica, como acontece entre a ficção e o documentário, duas camadas unidas com fita adesiva frágil. A quem serve a repetição da pergunta sobre o poder da Sétima Arte como retratista? Respondendo: principalmente, aos apaixonados que fazem dos filmes um modo de vida; à multidão de anônimos que não encara o cinema como algo recreativo para preencher as lacunas entre as várias atividades entediantes do cotidiano; àqueles que formulam questões semelhantes às de Desplechin sobre o poder admirável das imagens em movimento. Mesclando fatos e invenções, associando o cinema ao seu crescer, Desplechin compartilha conosco o amor.
Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024.
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