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Crítica


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Sinopse

A jovem Irina vive dentro de uma família rica e controladora, que conta com ela para ajudar nos negócios. No entanto, a garota sonha em se mudar para Bucareste. Enquanto não consegue fugir, encontra uma escapatória no relacionamento proibido com um professor universitário.

Crítica

Irina (Ioana Chitu) leva uma vida de opressões silenciosas. Dentro da rica família, dona de uma propriedade rural, seus passos são controlados pelo pai e os tios. Eles desejam saber com quem namora e se diverte, o que pretende estudar no futuro, e até que ponto está disposta a esconder as pequenas ilegalidades dos homens. Quando não coopera, leva alguns tapas do primo Liviu (“Ele estava nervoso, mas você sabe que ele gosta de você”), sofre ameaças do tio e humilhações da mãe. Em termos estruturais, a jovem está cercada de parentes capazes de lhe dar todo o conforto necessário. No entanto, os laços são nutridos por chantagem emocional e manipulação. Sejam agressivos ou insidiosos, pragmáticos ou perversos, estes herdeiros exercem um controle repleto de ódio, e aplicado sem freios à garota. Afinal, como agir de outra maneira, se conheceram somente esta forma de relacionamento a vida inteira? Irina sonha em fugir para Bucareste, na cidade grande, onde poderá ganhar a tão sonhada autonomia. A diretora Alina Grigore aproxima seu drama de uma história de máfia onde a proteção se confunde com controle, e o afeto, com dominação. O caso se torna ainda mais patente pela presença opressora de sujeitos mais velhos controlando o corpo, a voz e a liberdade de uma estudante tímida.

Para uma temática agressiva, o longa-metragem adota uma estética igualmente asfixiante. Lua Azul (2021) é construído com uma tensa câmera na mão, tremendo de um rosto ao outro, e atribuindo uma falsa leveza à coreografia precisa: o primo (Mircea Postelnicu) sai do caminhão, caminha pelo pátio, volta ao veículo, procura por um envelope perdido entre os bancos, volta e percorre a fazenda, enquanto a câmera o segue apressada, esbaforida, em plano-sequência. Os personagens passam a vasta maioria das cenas a entrarem e saírem entre cômodos e cenários, enquanto a cineasta se delicia com a dinâmica do caos. A possibilidade de contar com uma dúzia de corpos em cena simultaneamente significa que a fotografia pode decupar dentro da  própria imagem, ou seja, mudar o ângulo e a cena sem efetuar qualquer corte. São os moradores da região que chegam por um lado do quadro e saem pelo outro; afastam-se enquanto o foco se concentra naqueles em primeiro plano; conversam em grupos próximos para que um movimento lateral capte diálogos diferentes à direita e à esquerda. Estes familiares de terno e gravata, fazendo inúmeras ligações telefônicas, estão ocupados demais com os negócios para que o roteiro, e a imagem, se interrompam para observá-los. 

A captação tremida e o ritmo frenético dos deslocamentos sugere uma organização onde os elementos se resolvem em paralelo: assina-se um contrato enquanto se cobra um vizinho pela adoção de um bebê e se pede a Irina que revele a identidade do namorado secreto. Ninguém tem tempo para refletir: a primeira cena traz a protagonista sendo acordada aos gritos, recendo broncas e ordens. A narrativa pode soar acelerada até demais, mas felizmente a diretora saberá a hora de oferecer alguma forma de contemplação, através da revelação de um trauma passado. Partindo de um filme de ação, no sentido estrito do termo - as pessoas estão andando, dirigindo, gritando, correndo -, ela começa a se consagrar à psicologia, em especial de Irina, mas também de Liviu, interpretado com furor por Postelnicu. Como um animal selvagem, ele reage a qualquer estímulos com tapas e berros para, em seguida, pedir desculpas. O projeto encontra uma simbologia interessante para representá-lo: a presença constante de sangue ao seu redor, de fonte desconhecida: ele descobre sangue nas mãos, no pescoço, sem ter se ferido, a exemplo de um personagem shakespeariano. O machismo bruto transpira sangue.

O aspecto mais complexo de Lua Azul se encontra nas relações entre gêneros, especialmente entre Irina e um professor universitário com quem se relaciona. Grigore possui a audácia de desenhar esta aproximação tóxica com aspectos que vão do estupro à dependência afetiva, da relação paterna à Síndrome de Estocolmo. Suspeitando do abuso sexual durante uma festa, a protagonista retorna aos braços do possível agressor, como se quisesse compreendê-lo. O longa-metragem se arrisca ao seguir cena após cena uma garota introspectiva, de atitudes controversas, que poderia despertar a antipatia do público. Aliás, nenhum personagem soa agradável neste mosaico de uma burguesia rural ignorante. Pelo menos, ela jamais se restringe à posição de vítima, e rumo à conclusão, saberá utilizar a raiva dos homens uns contra os outros. Entre o status de heroína e anti-heroína, transforma-se em sobrevivente de uma forma de opressão socialmente aceita. Os laços de sangue são utilizados inúmeras vezes para legitimar os abusos. Após um tapa ou xingamento, Irina escuta uma variante da fórmula: “Mas ele é seu tio, vocês precisam fazer as pazes”. A noção da família patriarcal e tradicional se traduz numa fórmula nociva. Longe de criticar um ou outro personagem, a cineasta critica esta organização social como um todo.

Enquanto isso, a percussão repetitiva e provocadora toma conta de trilha sonora e as sequências agressivas se multiplicam. A mise en scène trabalha com a gradação, partindo de um conflito crônico que se torna mais forte e mais forte, até a inevitável explosão. Grigore encontra uma solução inteligente para encerrar esta fábula de uma família se autodevorando, ainda que as decisões narrativas sejam, uma vez mais, moralmente contestáveis. Ora, ela nunca oferece soluções fáceis, nem emoções reconfortantes ao espectador. A lua azul do título se converte no único instante de afetividade entre pai e filha, quando ambos admiram o céu a partir de uma sacada. No entanto, o perigo ronda este espaço: “Cuidado, você caiu dessa sacada quando tinha três anos de idade”, avisa o homem. A certa altura, o professor universitário, figura meio predadora, meio carinhosa, se vira a Irina e dispara: “Por que você tem medo dos seus impulsos violentos?”. A garota não sabe responder. Esta indagação resume o projeto inteiro: como lidar com a violência de classe, de gênero, de gerações, dentro das normas aceitáveis? Como manter a civilidade em estrutura hierárquica? Em que circunstâncias a violência é considerada legítima? Através de uma família específica, o filme questiona os mecanismos de manutenção do poder.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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