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Sinopse

Em uma vila na costa da Galiza, a vida diminuiu. Tudo o que se move é a luz sobre a baía, a ondulação ao redor da costa, as folhas de ervas daninhas rodopiando ao longo do rio, os animais que vagam pelas casas escuras.

Crítica

Lua Vermelha (2020) se oferece ao espectador como uma espécie de filme em câmera lenta. Isso não significa que todas as imagens se desenvolvam nesse ritmo, mas que o conteúdo inteiro se construa a partir da dilatação temporal. A trama é costurada por uma narração murmurada, sensual, evocando os mitos da Galícia. O uso de mapas e demais imagens ocorre ou literalmente em câmera lenta, ou através de um lânguido deslizar das imagens. As poucas pessoas em cena são vistas à distância, ora completamente paradas, ora movendo-se sem qualquer pressa pela natureza. Durante a apresentação do filme, o diretor Lois Patiño disse buscar uma “experiência do tempo”, o que neste caso significa menos ver o efeito de um plano longo (como em Dias, 2020) do que esticar uma ação pontual até ela quase perder o sentido. Esta seria uma forma de cinema homeopático, da diluição e da liquidez.

Por um lado, as composições estáticas podem impressionar. Há belos tableaux vivants de personagens parados nas paisagens, como fantasmas, com seus rostos ocultos pela sombra. Um sentido de suspense e/ou desorientação nasce a partir dessas composições, nas quais as vozes são reproduzidas em over, ou seja, sobrepostas às imagens dos personagens sem que estes movam os lábios. A aparência fantasmática se estende às composições de pessoas nas florestas, com os corpos cobertos por lençóis de cor clara. O diretor fornece um tipo de relação bastante solene com a mitologia da Galícia ao mencionar o monstro do mar que teria sequestrado o personagem Rubio (Rubio de Camelle). Existe um respeito sepulcral em relação àquelas histórias e imagens, o que jamais permite ao diretor se soltar, nem propor alguma forma de radicalidade. Suas imagens ficam presas ao encadeamento estático e linear, aos quadros elegantes e friamente calculados.

Por outro lado, estas mesmas imagens chamam atenção demais a si mesmas. Resta a impressão de que, em Lua Vermelha, o conteúdo humano se adequa às necessidades da câmera, e não o contrário. Percebe-se os corpos parados no ponto exato em que o diretor solicita, para captarem a melhor luz ou fornecerem os efeitos mais expressivos em planos gerais, ainda que todas essas pessoas estejam despidas de personalidade. Trata-se de corpos, objetos de decoração para tornar a imagem mais bela. Quando as três bruxas estão paradas em frente à câmera, esforçando-se para não encararem o aparelho, é possível pressentir o diretor dizendo algo como “Espera, segura... Agora olhem para cima”, quando então os três rostos se voltam ao alto. Há uma forma de coreografia da câmera, mais do que uma direção de atores, até porque os personagens posam, não se desenvolvem. Nem mesmo o tão citado monstro do mar aprofunda-se para além do imaginário de uma fera qualquer.

Para um projeto tão calcado em metáforas visuais, o resultado se revela pobre em escolhas criativas. O diretor aposta em símbolos bastante literais: a rocha em forma de cauda, a lua literalmente vermelha, os mapas com desenhos de monstros, os próprios fantasmas de lençol. Estes mesmos três ou quatro recursos se repetem à exaustão, ganhando intervenções mínimas (a imagem inteira tingida de vermelho, a espuma do mar projetada sobre o céu), porém sem qualquer forma de construção mais inventiva, nem mesmo de desconstrução dos significados superficiais. O monstro marítimo será sempre representado pela imagem do peixe de boca aberta, e o corpo do homem devorado resultará literalmente na imagem do cadáver. Patiño chega mesmo a utilizar algumas imagens duas vezes. É curioso que um projeto em busca de poesia se reduza tanto à literalidade das coisas, e que o discurso a respeito de uma riqueza história e mitológica muito particular se converta num imaginário universal de ataques marítimos e homens desaparecidos.

“Isso não é real. Não pode ser. Somos todos o sonho de alguém”, afirma um dos depoimentos em voz over. Seria possível enxergar toda a narrativa como uma forma de sonho/pesadelo, ou então uma alusão ao luto coletivo do vilarejo em relação ao homem desaparecido. Alguns mínimos elementos mais inventivos (a cabra com voz de humano imitando cabra) soam interessantes, porém não se desenvolvem. O filme não decide investigar texturas de imagens, fragmentação da cronologia, a poesia das formas, da geometria, nenhum tipo de fusão entre o indivíduo e a natureza, entre o humano e o monstro. Para um filme dito “experimental”, há pouca experimentação na obra espanhola, cuja alma documental e cujos desejos de composição bloqueiam qualquer aprofundamento na mitologia que pretende homenagear.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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