Sinopse
Na oscilante fronteira entre Paraguai e Brasil, é encontrado o cadáver de uma menina que foi violentada antes de ser assassinada. E a investigação traz à tona a podridão de sua família.
Crítica
De imediato, um diferencial chama atenção no cenário de Lucette, longa de estreia dos diretores Oscar Ayala Paciello e Mburucuyá Fleitas: a trama está ambientada em Ponta Porã, na fronteira entre Brasil e Paraguai, com seus personagens falando em até mesmo três idiomas distintos. Esse estranhamento inicial irá marcar o desenrolar das ações, indo de um ineditismo curioso a uma familiaridade inesperada, justamente pela relação que o cinéfilo brasileiro tem com esta região, geograficamente próxima, mas cultural e sociologicamente tão distante como se fosse um mundo à parte. A personagem-título é a filha do casal Da Motta, que não muito após o começo da história é encontrada morta e violentada em um bosque perto de casa. Tem-se, portanto, o tabuleiro preparado: trata-se de um caso de investigação, no melhor estilo “quem é o culpado?”. Porém, com tão poucos personagens em cena e motivações não muito disfarçadas envolvendo os protagonistas, resolver o tal mistério será a menor das preocupações da audiência, que se verá envolvida em uma encenação que não fará jus ao interesse despertado logo no começo.
Importante estar atento ao desenho do ambiente onde os eventos acontecem: Lucette vive com os pais em uma residência ao lado dos tios. É quase como se fosse no mesmo terreno – de um lugar se pode observar com facilidade o que se sucede no outro. Tanto é que ambas as casas são atendidas por uma única empregada doméstica, essa de origem indígena e atenta aos costumes e tradições do seu povo, adicionando um caráter exótico aos episódios narrados. Sim, pois não tardará para que a suspeita sobre a responsabilidade do crime ocorrido se direcione a ela, justamente pelo não entendimento do homem branco pelo lugar que ele próprio tratou de ocupar sem se dar ao trabalho de estudar, ou mesmo, compreender. É o retrato de uma invasão secular, que segue espalhando suas consequências sobre os que por ali perduram. A jovem, no entanto, não parece estar totalmente alheia ao ocorrido. E muito disso se percebe pelo uso da linguagem: por qual razão ela, que se esforça no espanhol com os patrões e se revela confortável com o guarani de nascença, opta por se comunicar em português com o tio da menina? O que naquelas meias palavras trocadas entre eles deveria esconder – ou, por outro lado, revelar?
Pistas como essa estão espalhadas por todo o filme, sem que tenham sido disponibilizadas de uma maneira muito precisa. A impressão que fica junto ao espectador é de se estar diante de um dispositivo ao acaso, como se fosse suficiente apenas a exposição delas, sem um necessário cuidado referente à importância que irão assumir no decorrer dos acontecimentos. O surgimento de um ex-policial, que afirma ter trabalhado para a Interpol (!), e a vontade dele em desenvolver um trabalho detetivesco à parte até poderia fazer sentido caso se verificasse a ineficácia da força policial envolvida, mas essa não apenas se mostra quase nula, como, quando surge, é para dar dicas ao agente paralelo. Ou seja, a intenção está em tornar evidente a corrupção dos poderes estabelecidos, ou apenas no ato de inserir figuras enigmáticas que possam ou não colaborar com a resolução do enigma proposto? Eis um debate que até chega a se instaurar, mas que não é levado adiante por nenhum dos envolvidos.
Mas há outros elementos em cena que, ao invés de despertar pulgas atrás das orelhas entre os mais atentos, se mostram quase como pontos de distração, como se convocados apenas para desviar os olhares daquilo que se mostra óbvio. Quando a mãe decide abandonar o lar da família fazendo declarações como “eu não quero colaborar com ninguém” (para que se descubra o culpado do assassinato), tal dizer não tem como passar em branco. Da mesma forma, há a maneira taciturna do tio, que deixa claro saber mais do que se mostra disposto a revelar. Ou o pai, que na primeira cena se mostra não muito disposto a se envolver em seus compromissos maritais, ao mesmo passo em que se revela o mais abalado pela morte da garota, a quem nutria uma afeição que soa normal, pelo pouco destaque recebido, mas que insistentemente é vista como exagerada pelos demais personagens. Ou seja, eis um imbróglio digno de Nelson Rodrigues, com pitadas de Plinio Marcos, mas transposto para uma terra sem lei, tal qual dita o estereótipo fronteiriço.
Se já causa espanto a ciência de que há uma mulher por trás dessa rede tão mal-arranjada – Mburucuyá Fleitas é, além de co-diretora, uma das roteiristas e produtora – que vilaniza sem disfarces a figura feminina, desde a vítima que dá título ao filme como também as envolvidas remanescentes, como as presenças maternas (legítimas ou não), há de se pontuar a total inabilidade do elenco em provocar reações mais envolventes entre os que os assistem. Entre os dois irmãos (pai e tio da menina) é difícil afirmar qual é o mais inexpressivo, seja pelo constante tom de apatia de um ou pelo esforço em despertar uma aura enigmática do outro. Mas talvez ninguém esteja pior em cena do que a figura responsável pelos atos investigados, que tenta justificar o absurdo através de motivações nada convincentes em meio a caretas exaltadas e olhares acusadores. Lucette se apresenta como um discurso de denúncia e justiça, mas tudo que consegue provocar é constrangimento e assombro.
Filme visto durante o 1º Bonito CineSur – Festival de Cinema Sul-Americano de Bonito
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