Sinopse
Sam é a pessoa mais azarada da face da Terra. Ao descobrir a mágica Terra da Sorte, ela vai se deparar com um dilema, uma vez que nesse espaço repleto de criaturas mágicas os humanos não são permitidos.
Crítica
O conceito de “sorte” é, no mínimo, curioso. Aquilo que pode funcionar à perfeição para alguns, talvez não represente nem a menor das expectativas àqueles em situações diversas, por exemplo. É tudo uma questão de perspectiva. Luck, longa de animação dirigido por Peggy Holmes, tem como base esse conceito, e a percepção a respeito dele cativada pelos seus possíveis espectadores é que irá estabelecer as paridades e eventuais conexões entre seus protagonistas. A maneira como irão se completar – um sortudo, outra azarada; uma humana, outro animal; uma básica, outro extraordinário – é a aposta na qual recaem todas as fichas do projeto, e a partir dessas relações, como irão se entender e relacionar, até a inevitável percepção do quanto se necessitam mutuamente para, enfim, se tornarem um todo mais consistente. Essa será ainda a maneira como a audiência a qual se dirigem, jovens em formação e prontos para descobrirem um mundo que se estende diante deles, consiga tirar daqui algum tipo de proveito. Não que se exija muito esforço para tanto, assim como o contrário também não se verifica.
A orfandade mais uma vez se faz presente, assim como em tantos outros contos similares. Sam está chegando aos 18 anos, e com isso vem também não apenas a maturidade, mas algumas outras obrigações, como a saída do orfanato onde mora e a busca por um encaixe no tecido social. Mas nada de desespero: não se está falando de uma jovem jogada sem maiores preparos à selva urbana, como diariamente acontece por todo o Brasil. No mundo da ficção, essa é só mais uma etapa a ser cumprida, pois o acompanhamento de quem sempre esteve ao lado dela continuará, somente agora de um modo diferente. Sam ganha não apenas um apartamento, um espaço que comporte suas mínimas necessidades, mas também uma oportunidade de emprego. As coisas parecem, enfim, se encaixar. Mas há um detalhe a mais a respeito dessa garota: ela acredita ser dotada de uma imensa dose de azar. Daquele do dia-a-dia, que a faz perder o ônibus na parada, da fatia de pão que cai sempre com a geleia virada para baixo e de ter que lidar com o cliente mais incômodo do dia. Ou seja, nada que a impeça de viver, mas o suficiente para tornar seu cotidiano um tanto mais sofrido.
Após mais uma maré de desencontros e expectativas frustradas, acaba dividindo um sanduíche na sarjeta com um gatinho que por acaso passava por ali. Sua sina começa a mudar, no entanto, quando o bichano se afasta e, no seu lugar, uma moeda permanece. A menina encontra a peça, mas não entende de imediato o valor do que agora tem em mãos. Porém, quando aquilo ao qual a vida inteira esteve acostumada passa a mudar – o não esquecimento da chave, o transporte que chega na hora certa para levá-la, o serviço que é cumprido sem percalços – sabe que há algo de estranho, e descobrir a origem dessa mudança passa a ser sua missão. Pois bem, eis que o felino não é um qualquer – aliás, longe disso. Bob, como ela descobrirá ser seu nome, é um ser especial, enviado de uma realidade distinta e encarregado de espalhar a sorte por onde passa. Ele é apenas um dentre tantos com encargos semelhantes que ocupam seus dias oferecendo esse equilíbrio entre achados e perdidos aos humanos. A Sortelândia, portanto, sobrevive desse trabalho.
Mas, como ficou claro desde o começo da história – o roteiro é de Kiel Murray, o mesmo do simpático Raya e o Último Dragão (2021) e do genérico Carros (2006) – tanto o início como o fim deste relato se dá no contraponto que um lado tem a fazer com o outro. Portanto, se essa cidade mágica onde tudo dá certo aparentemente funciona de acordo com o esperado, é porque o seu inverso também cumpre a sua parte. Em Azarópolis, no entanto, nem todos estão felizes com o destino que lhes coube. Mais interessante do que acompanhar a série de tarefas que acabam levando Sam e Bob a uma aventura entre esses dois lugares mágicos em busca de uma respeitabilidade perdida e tarefas não cumpridas, é refletir sobre como essas dualidades vão aos poucos se estabelecendo, muitas vezes de forma inversa ao que se poderia imaginar. A dragoa apaixonada, num primeiro instante, parece ser a mais covarde, justamente por ter ciência do tanto que pode, a qualquer momento, perder. Pela mesma lógica, o unicórnio fora de forma, exilado e sozinho, é também o mais feliz, pois qualquer coisa que lhe aconteça será, por princípio, também uma novidade diante o marasmo com o qual lida diariamente. E assim por diante.
Há ação de sobra em Luck para entreter os mais pequenos, além de um colorido vibrante e personagens carismáticos, como os duendes sortudos ou os ogros azarados. Aos adultos, dubladores como Simon Pegg, Whoopi Goldberg e Jane Fonda (ou mesmo Gregório Duvivier, no Brasil, que oferece personalidade a um tipo inusitado – o gato preto!) servem como um extra a ser aproveitado com deleite. E se até então Holmes havia se envolvido apenas em projetos derivados, como A Pequena Sereia: A História de Ariel (2008) e Tinker Bell: O Segredo das Fadas (2012), aqui tem sob sua responsabilidade algo original, que se não chega a ser inovador ou mesmo surpreendente, ao menos encanta o bastante para brincar com os elementos que tem a seu dispor e empregá-los na medida exata para destacar seus méritos. E se em meio a isso ainda oferece uma reflexão pertinente a respeito do quanto a luz só faz sentido quando próxima da sombra, soa quase como um luxo ao qual muitos nem sonham se dar ao direito, mas que aqui é introduzido sem tropeços, permitindo uma apropriação lenta e gradual, e acima de tudo, necessária e consistente.
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