float(0) float(0) int(0)

Crítica


8

Leitores


Onde Assistir

Sinopse

Em Luiz Melodia: No Coração do Brasil, Luiz Melodia conta sua trajetória, desde a infância nos morros do Rio de Janeiro, até ser descoberto por artistas como Wally Salomão e Gal Costa. Passa por seu sucesso radiofônico e conflitos com gravadoras e showbiz.

Crítica

O cinema vive de ciclos. Quando pensamos em documentários biográficos, há uma vertente explorada por anos a fio de produções recheadas de entrevistas, de falas de personalidades gigantes expressando admiração pelo objeto do filme a ser celebrado. Os chamados talking heads (cabeças falantes) foi saturado ao ponto de ser vulgarizado, assim como o jump scare nos filmes de terror. Então, assim como os realizadores de horror têm tentado se desviar dos sustos como forma de impactar espectadores, os documentaristas têm buscado alternativas a esse modelo de testemunhos de terceiros entrecortando imagens de arquivo para construir um panorama sobre a vida de alguém. Nada é proibido, nem as cabeças falantes e muito menos os jump scares, mas diante de um esgotamento é preciso dobrar a vigilância para não soar derivativo ao utilizar expedientes desgastados. Luiz Melodia: No Coração do Brasil é um esforço cinematográfico para contar a história do grande Luiz Melodia sem recorrer a testemunhos ilustrativos ou narrações clássicas. A cineasta Alessandra Dorgan fez uma (ao que parece) vasta pesquisa em arquivos para chegar a uma narrativa e primeira pessoa na qual o protagonista fala de si mesmo ao longo dos anos. O trabalho é juntar fragmentos e os dispor a fim de criar sentido. Desse modo, temos Melodia por ele mesmo, ainda que todas as escolhas carreguem seus vieses.

Em Luiz Melodia: No Coração do Brasil podemos falar de um cinema arqueológico, aquele que vai buscar nos baús empoeirados da memória os subsídios para construir discurso. Alessandra faz um filme muito bonito sobre esse menino periférico da cidade do Rio de Janeiro que nunca cansou de cantar a sua reverência à origem no Estácio de Sá. O roteiro assinado por Alessandra Dorgan, Patricia Palumbo e Joaquim Castro (este também o montador do filme) constrói um panorama resumido de uma vida que certamente não cabe em pouco mais de 70 minutos, mas que nesse recorte se apresenta em seu esplendor. Melodia fala da origem humilde, do exemplo que teve em casa com o pai compositor. E Alessandra apresenta as imagens desse pai do qual Melodia herdou o fascínio pela música, mas também utiliza trechos de filmes e programas televisivos da época para fazer alusão àquele tempo de um modo mais amplo. Assim, quando o cantor e compositor discorre sobre a sua meninice subindo e descendo o morro do Estácio, o que vemos são imagens de garotos brincando nas vielas de uma comunidade, ou seja, ela ressignifica esses vislumbres do que parece ser uma reportagem com a história de Melodia contada em off. Como evidentemente não tem imagens de tudo o que escolhe para colocar no filme, ela recorre a fontes heterogêneas que criam a sensação de que se está falando da época.

Aliás, um dos principais trunfos de Luiz Melodia: No Coração do Brasil é a capacidade de, ao mesmo tempo, celebrar em primeira pessoa a um dos principais artistas musicais brasileiros do século 20 e, a partir de sua história, oferecer ao espectador noções de como era esse Brasil ao longo das décadas em que Melodia surgiu, estourou em popularidade e, mais tarde, teve de conviver com as engrenagens nem sempre convidativas do mercado fonográfico. O protagonista fala do começo, da quase desistência diante dos obstáculos para viver de música, do encontro fundamental com Gal Costa que alavancou o seu nome ao gravar a icônica “Pérola Negra” e do modo como se inseriu num contexto artisticamente efervescente que continha figuras como o poeta Torquato Netto. O que sobressai nessa história revista é a personalidade de Melodia, a sua ousadia de ir contra as marés comerciais porque elas não eram necessariamente convidativas ao seu estilo. Nas entrelinhas do descontentamento de Melodia com a tentativa do mercado de enquadrá-lo como sambista podemos perceber os vícios de uma sociedade racialmente diversa, mas que perpetua estigmas que nem todos estão dispostos a seguir. “Por eu ser negro, as gravadoras achavam que eu deveria ser sambista”, diz o artista consciente do racismo estrutural que tenta colocá-lo em prateleiras pré-estabelecidas. Há mundos implícitos nas falas de Melodia.

Alessandra Dorgan poderia fazer aquilo que no jargão chamamos de “jogar para a torcida”, ou seja, intercalar as falas de Melodia com todos os seus grandes sucessos e atingir um resultado catártico. No entanto, ela escapa a mais essa armadilha que virou convenção no documentário biográfico musical. Não é de se estranhar se alguém mais viciado nesse tipo de estrutura sair da sessão sentindo falta de determinados hits. Dentro dessa ideia da curadoria musical, Alessandra utilizou as canções que extrapolam um pouco a sua permanência na memória dos fãs, aquelas cujas letras e/ou circunstâncias em que foram feitas dizem algo a mais sobre o personagem. Por exemplo, quando Melodia canta “Ébano” vira num instante de afirmação de sua negritude e “Juventude Transviada” vale ainda mais por aquilo que carrega a reboque (sucesso comercial absurdo que leva o compositor a se exilar voluntariamente em Salvador para a “poeira baixar”). Ainda que o filme tenha reiterações desnecessárias, como Melodia falando repetidamente de seu amor incondicional pelo Estácio de Sá, Luiz Melodia: No Coração do Brasil é um retrato muito bonito desse artista. Nele temos acesso a várias facetas de Luiz Melodia e, o mais importante como gesto cinematográfico, sem a pretensão de esgotar uma figura inesgotável. Alessandra é uma arqueóloga que preserva a diversidade das texturas do material de arquivo e ainda nos brinda com verdadeiras epifanias, como a cena de Luiz Melodia indo ao encontro da câmera enquanto ouvimos Wally Salomão repetir de modo febril “A VIDA É SONHO”. Coisa linda demais.

Filme visto no 18º CineBH, em setembro de 2024.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *