Crítica
Leitores
Sinopse
Uma comunidade isolada vive de acordo com os preceitos rígidos do Senhor, um profeta que afirma ter conversado com Deus. Ele tem três filhas mulheres com suas discípulas, porém aguarda a chegada do primeiro homem. Quando um garotinho aparece na região, o menino passa a ser considerado uma encarnação de Jesus - ou seria na verdade o Diabo disfarçado?
Crítica
Pode levar algum tempo até o espectador se acostumar às imagens particulares de Luz: A Flor da Maldade (2019). A história se abre com sequências de cores saturadíssimas, muito além do teor esperado das fábulas convencionais. Conforme a natureza se pinta de tons verdes, azuis e vermelhos profundos, a trilha sonora de flautas campestres evoca um teor pacífico, infantil. A pretensa ingenuidade do começo se contrasta com inserções discretas de camas ensanguentadas e corpos de meninos arrastados ao vilarejo, sem interromperem a sucessão de gentis cenas da natureza. O início se torna assustador por não se assumir como tal: a harmonia e o caos convivem graças à montagem. Esqueça as cenas escuras, a trilha sonora perturbadora e a floresta sinistra do terror tradicional: a maior parte da narrativa se desenvolve em plena luz do dia, sobre cenários apresentados pela fotografia como um novo Jardim do Éden. A produção evidencia suas referências bíblicas, mencionando explicitamente os anjos, a chegada do menino Jesus, as Virgens Marias cuja pureza é protegida pelo pai, e a tentação do Diabo sob forma de um jovem excitado de nome Adão. Não é preciso grande esforço para transpor a profunda violência da Bíblia a um conto de horror: o diretor Juan Diego Escobar Alzate extrapola o fundamentalismo religioso ao limite da loucura.
O cineasta se mostra avesso às sutilezas e subentendidos. Diversos diretores de terror operam em raciocínio semelhante: se o cinema de gênero permite mostrar todas as vísceras e horrores que os projetos “sérios" censurariam, por que escondê-los? Assim, a caracterização de personagens, espaços e símbolos é exagerada ao máximo: o céu possui uma gigantesca lua digital; os moradores da comunidade passam dia e noite com os rostos sujos de preto, inclusive ao acordarem; atrizes adultas interpretam jovens adolescentes, e a noite é representada por uma luz azul fortíssima, semelhante a uma abdução extraterrestre. O discurso solicita ao espectador que aceite tacitamente diversas liberdades poéticas sem questionamento: jamais descobriremos como a seita messiânica se formou, de que modo os habitantes reagiram à suposta comunicação do Senhor (Conrado Osorio) com Deus, nem por que se estabeleceram neste local exato, há quanto tempo. O filme parte de um contexto estabelecido e estável, para então semear o caos através de uma sucessão de conflitos: a chegada do menino loiro e emudecido, a utilização da música em forma de comunicação demoníaca, o medo da sexualidade ativa das filhas em fase de crescimento. Alzate demonstra o prazer perverso, e cinematograficamente instigante, de reestabelecer o paraíso para destrui-lo.
Um dos principais pontos de interesse decorre da montagem assinada pelo cineasta junto a Luis Enrique Vanegas. Luz: A Flor da Maldade (2019) demonstra uma obsessão pela questão do “enquanto isso”: o que os demais personagens estariam fazendo enquanto a câmera filma estes aqui? Como se comportam o Jesus acorrentado, o messias autodeclarado e o jovem conquistador enquanto observo as três irmãs? Quando estas se separam uma das outras, o que estaria ocorrendo a Uma (Yuri Vargas) e Zion (Sharon Guzman) conforme seguimos Laila (Andrea Esquivel)? O longa-metragem se converte num amplo estudo acerca dos limites da montagem paralela: cada cena é entrecortada pelos dilemas simultâneos das pessoas ao redor, em sequências velozes, picotadas e caleidoscópicas. Em consequência, a mise en scène adota um olhar onisciente e externo, conveniente para uma narrativa sobre divindades. O espectador nunca descobre a vida reclusa por um ponto de vista em particular, porque o autor se recusa a priorizar uma figura em detrimento de outra. Adotando um paternalismo equivalente àquele do comandante do grupo, o diretor abraça seus personagens, importando-se em igual medida com suas chagas, até perceber as limitações deste dispositivo - sem surpresas, o clímax decorre da necessidade em deixar alguns deles partir.
Apesar da interessante concepção de montagem, e das escolhas firmes (para o bem e para o mal) de direção de fotografia, a produção sofre com problemas que conferem ao resultado a aparência inequívoca de filme B. Compreende-se que o projeto tenha circulado tão bem por festivais de horror e de gênero, encontrando maior dificuldade para penetrar a bolha dos festivais generalistas, onde esta qualidade de captação e finalização costuma ser barrada. O trabalho de captação e mixagem de som apresenta deficiências, tornando algumas falas incompreensíveis, ocultadas pelo volume alto da trilha sonora. O foco em esmiuçar o tempo paralelo não se estende ao espaço: a câmera efetua poucos passeios pelas redondezas, dificultando a compreensão da geografia local e sua relação com o mundo ao redor - as cidades têm consciência da seita instalada na floresta? Mesmo o cenário da casa de madeira é retratado em ângulos repetidos, transparecendo a dificuldade de estabelecer dinamismo neste palco fundamental dos conflitos. O uso ocasional de efeitos especiais se mostra um tanto artificial, embora condizente com a estética kitsch.
Curiosamente, a postura extrema das imagens se encontra com um discurso marcado por nuances. Luz: A Flor da Maldade oferece um estudo da moral onde as noções de “bem” e “mal” são repetidas à exaustão. O grande desafio, neste caso, se encontra em separá-las: o menino pode ser considerado Deus ou o Diabo; o toca-fitas se transforma em objeto de pecado ou elevação da alma; um coelhinho representa a beleza da natureza e as provações do demônio. A narrativa se abre e se encerra com a tese, comprovada ao longo da trama, que “somos todos o bem e o mal, e seguimos o nosso caminho”. No período político em que as pessoas mais vis e manipuladoras reivindicam para si o status de messias salvadores, a reflexão sobre uma mistura de bondade e maldade inerente a cada indivíduo contribui a pensar para além das polarizações. Ao final, o pai autoritário percebe a perda de seu poder, enquanto as filhas se revelam menos ingênuas do que aparentavam - em outras palavras, os extremos se equilibram, ou pelo menos revelam ponderações inesperadas. Em paralelo, o bode branco se traduz numa figura apropriada ao céu e ao inferno, e as mesmas chamas que queimam os pecados produzem novos enfrentamentos à palavra divina. Por trás da brilhosa e chamativa embalagem, a obra colombiana oferece um retrato complexo de nossa relação com a transcendência.
Filme visto online no 12º Cinefantasy, em setembro de 2021.
Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)
- O Dia da Posse - 31 de outubro de 2024
- Trabalhadoras - 15 de agosto de 2024
- Filho de Boi - 1 de agosto de 2024
Deixe um comentário