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Crítica


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Sinopse

Cinco pessoas que superaram a dependência de drogas ou álcool narram suas trajetórias de sobrevivência.

Crítica

Luz Acesa (2020) parte de uma tese muito clara: a dependência de drogas e álcool é profundamente nociva aos indivíduos, mas pode ser superada. Ainda que não se trate de uma constatação propriamente nova, o diretor Guilherme Coelho e sua equipe narram histórias de sobreviventes dispostos a compartilhar tanto seus momentos de queda quanto os esforços de superação. No sentido estrito do termo, pode-se falar num filme de autoajuda, visto que os personagens utilizam suas narrativas para inspirar espectadores que eventualmente se encontrem em situações semelhantes, ou conheçam pessoas próximas enfrentando esta questão. O cineasta inclusive pergunta: “Por que vocês toparam participar desse filme?”, escutando como resposta a possibilidade de desmistificar a adição. Trata-se de um cinema utilitarista, pretendendo exercer um impacto em seu interlocutor, funcionando enquanto amparo psicológico. É raro presenciar um projeto que apresente com tamanha humildade seus objetivos. Assim como os cinco protagonistas confessam suas piores fases com uma franqueza ímpar, a direção assume a intenção de explorar o cinema enquanto veículo inspirador.

Devido a esta formatação, as histórias aparentam equivaler umas às outras. O cineasta busca homens e mulheres, de lugares e classes sociais distintas no Rio de Janeiro. Mesmo assim, as narrativas se desenvolvem em uníssono: a baixa autoestima e falta de perspectivas conduziram ao uso de álcool ou drogas, até o abuso, a degradação física e mental, e enfim a busca desesperada pela recuperação. Os protagonistas atravessam momentos semelhantes: estão saudáveis, sem consumir quaisquer substâncias. O documentário se conduz do passado sombrio até ao presente repleto de sorrisos e abraços (a “luz acesa” do título), onde as histórias invariavelmente caminham para a melhoria. Não se aborda a questão das drogas enquanto problema de saúde pública, nem de política local (algo curioso, sobretudo em se tratando da cidade do Rio de Janeiro). Evita-se conversar com especialistas, investigar dados de dependência ou índices da recuperação. O projeto acredita que os cinco casos sejam suficientemente representativos, o que transmite um otimismo talvez simplificador dentro da gama de maneiras possíveis de lidar com a dependência. Aposta-se no louvável teor humano, porém sem dar um passo atrás e compreender de que maneira estas trajetórias se encaixam num contexto socioeconômico mais amplo.

O documentário investe numa estrutura convencional. A integralidade da narrativa é composta de testemunhos em primeira pessoa, diretamente à câmera. Os protagonistas permanecem ao lado dos familiares que lhes deram apoio, fortalecendo o discurso de uma rede de ajuda. Não se acompanha o dia a dia destas pessoas, os símbolos de suas adições passadas, nem se elabora metáforas ou qualquer referência ao passado, cabendo ao espectador conceber o equivalente imagético dos relatos. As cenas presentes são escolhidas por sua exemplaridade: o vôlei na praia e a corrida pela floresta demonstram a saúde dos protagonistas, o reencontro com colegas de bar comprova o abandono do álcool, a prática da pintura, no caso de um artista plástico, demonstra a capacidade de se manter ativo, criando, feliz. Existe pouco relevo entre os depoimentos intercambiáveis em teor e estética, desprovidos de qualquer fricção via montagem ou imagem. O recurso da confissão busca se legitimar pela coragem dos personagens e pela afinidade com o discurso de redenção tipicamente religioso (Deus passa a ser citado com frequência rumo ao final). No entanto, ele se mostra frágil para sustentar um longa-metragem, por mais que as conversas sejam amigáveis e carinhosas.

Além disso, existem problemas de som e montagem. Coelho se coloca enquanto personagem durante as conversas, interrompendo os relatos, fazendo perguntas e condicionando os temas. Neste caso, teria sido necessário microfonar o diretor e editar o som deste com a mesma precisão que se manipula o som das entrevistas. No terço inicial, as numerosas intervenções da direção se tornam pouco compreensíveis, impedindo a fluidez das falas. Uma cena dentro do metrô chama a atenção por expor uma jovem alcoolizada e pelo desnível do tratamento sonoro. Em paralelo, a aposta no dispositivo único dos talking heads dificulta a tarefa da montagem, que não possui muitas opções para dinamizar as cenas, precisando recorrer a cortes internos à imagem. A ideia de proporcionar a reunião entre três personagens no final poderia render interações inesperadas, mas apenas reforça o discurso repetido desde a primeira cena: a necessidade de superação de si, a felicidade após as drogas e o álcool, o alívio da vida livre da dependência. A aposta na imagem da festa também acena a um conflito interessante, por sugerir a possibilidade de se divertir entre amigos sem a necessidade de estimulantes. Entretanto, o projeto evita acompanhar seus personagens se divertindo.

Luz Acesa parte de ideias nobres, porém dentro de um formato limitado. Aposta-se na consciência de um passado superado, na racionalidade limitada à constatação do problema. Todos os personagens possuem uma lucidez exemplar sobre seus próprios casos, chegando ao projeto com um discurso pronto: eles são convidados a narrarem sua superação, ao invés de suas dúvidas. Não há a sensação de espontaneidade nas falas, apesar do despojamento das interações. Assim, valorizam-se os extremos: o fundo do poço e a alegria atual, as agressões físicas no passado e as atividades físicas no presente. Privilegia-se a ideia da reinvenção de si ao invés das maneiras de atingi-la: a adição se torna uma questão de moral. O condicionamento retórico das conversas tampouco ajuda: quando uma personagem afirma que o alcoolismo “é uma doença”, o diretor retruca: “E é uma doença?”. Ao obter uma resposta evasiva sobre a libido na sobriedade, insiste-se no tema até obter a discussão desejada. Existe uma honestidade saudável da equipe ao assumir a presença da câmera e dos equipamentos, escolhendo os enquadramentos junto dos personagens. No entanto, o teor de proximidade fraterna não basta para aprofundar uma discussão mais complexa do que a mera força de vontade.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
4
Francisco Carbone
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MÉDIA
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