Crítica
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Sinopse
Um tecido denso de histórias, cronogramas e cenários, misturados com cosmologias indígenas, diários de viagem e literatura antropológica.
Crítica
Os personagens de Luz nos Trópicos (2020) não têm nome. Eles vêm de algum lugar impreciso, deslocam-se entre países diferentes, sustentam comunicações enigmáticas uns com os outros. Os diálogos são raros. Ao ocultarem seu passado (conflitos anteriores, família) e também os acenos a um futuro possível (ambições, desejos, objetivos) vivem num eterno presente – uma escolha curiosa para um filme em que as passagens de tempo são fundamentais. Talvez seja mais apropriado dizer que estes personagens não constituem a representação de pessoas específicas, com uma história particular: eles são ideias, símbolos. O fato de um jovem da cidade sair de um lugar frio e encontrar uma nova vida entre os índios possibilita a leitura importante de retorno às raízes, de contato com as tradições pré-colonizadoras. A chegada de portugueses e outros europeus (falando espanhol, francês) à floresta amazônica, com seus trajes de aristocracia colonial, também resgata um significado muito forte na história do nosso país. O encontro sutil entre ambos os mundos, às vezes no mesmo plano (o personagem contemporâneo de Begê Muniz se desloca pelas águas, e então, encontra os europeus de séculos atrás), fornece fricções no espaço e no tempo.
A cineasta Paula Gaitán apresenta mundos diferentes, mesmo opostos. No entanto, não se contenta em sublinhar as evidentes distinções (o contexto natural dos índios versus o cenário capitalista dos norte-americanos, por exemplo), preferindo investigar possibilidades de transição entre eles. Ela constrói, portanto, um filme de processos, no qual as principais conjunções espaço-temporais operam através de ferramentas estéticas, ao invés de narrativas. Este constitui um dos elementos mais fascinantes do projeto: a capacidade de produzir significado e criar um discurso por meio da complexa montagem, da iluminação, das texturas da imagem. Teria sido fácil, e talvez menos instigante, traduzir estes pensamentos através do roteiro, com os personagens enunciando suas intenções. Aqui, no entanto, a chegada dos portugueses no passado é representada com a textura nítida do cinema digital, apropriado à contemporaneidade, ao passo que uma ponte nos Estados Unidos adquire a granulação e as “sujeiras” típicas da película 16mm e do Super-8. A paisagem norte-americana se combina com os sons da floresta distante, em outro país. Uma longa travessia rio adentro, na região amazônica, se encontra com o longo passeio noturno da câmera pelas ruas de uma megalópole. O tom se inicia com a luz nos trópicos, e se encerra com a frase “It’s winter in America”.
As transições se constroem igualmente pela conjunção entre o natural e o artificial. A dilatação dos tempos, o preparo de uma refeição por uma mulher indígena, um encontro de skatistas nos Estados Unidos remetem à linguagem tradicionalmente documental, retratada com impecável senso de enquadramento e iluminação. Em oposição, a música contemporânea (Hip hop? Slam?) dos portugueses na gruta, o encontro fantasmático da personagem de Clara Choveaux com um homem que lhe pinta o corpo e a lenta caminhada de Begê Muniz até a câmera, parando no ponto exato em que lhe enquadram os olhos, aproximam-se da performance, do artifício assumido enquanto tal. Há interesse em capturar tanto a bela movimentação dos pássaros sobre a copa das árvores (o que há de mais natural) quanto em introduzir dezenas de filtros coloridos, granulações inesperadas dentro de uma cena nítida, trucagens lúdicas que aludem ao cinema dos primórdios, praticado por Méliès (o que há de mais artificial). A estética nunca para de se reinventar, sem jamais soar incoerente ou aleatória: a união desta narrativa, seja por blocos espaciais (comunidade indígena/gruta/cidade), seja por travessias marítimas, permite que as imagens dialoguem umas com as outras em momentos distintos da narrativa. A viagem inicial do homem interpretado por Begê Muniz adquire novos significados rumo à conclusão. O poeta/narrador de Carloto Cotta atravessa tempos e se torna um elo de ligação. O filme nunca para de elaborar seus personagens, porque nunca para de refinar suas ideias.
Por isso, os recursos estilísticos estão destituídos da vontade de chocar ou provocar um senso de espetáculo. A experiência se mantém melancólica. O primeiro close-up de fato aparece por volta de 70 minutos, permitindo à imagem se aproximar em seguida de alguns rostos, como se tivesse interesse de conhecer estas figuras aos poucos. A primeira intromissão de trilha sonora ocorre aos 146 minutos, de maneira discreta, abrindo as portas para outras melodias raras, porém potentes. O travelling lateral sobre a beira dos lagos resulta natural, até percebermos à margem algumas figuras humanas urbanas e contemporâneas, numa espécie de tableaux vivants. Aos poucos, os diálogos permitem a repetição (“É assim que fui criado como um atleta”), enquanto a montagem e as imagens introduze ruídos, fraturas, dissonâncias. A ilustração de índios dentro de um museu norte-americana é registrada um telefone celular. Uma paisagem natural projetada sobre um imenso círculo coberto por tecidos provoca um efeito estético impressionante. Um cavaleiro e seu cavalo, motivos tradicionais do imaginário sertanejo, são iluminados por uma luz estroboscópica, e então acelerados, distorcidos, até se atingir uma forma de abstração. Esta composição magnífica constitui a mais bela cena do filme, e também um dos momentos mais potentes que o cinema brasileiro construiu em algum tempo.
É sintomático que Sertânia (2020) e Luz nos Trópicos, dois filmes de cineastas veteranos, ambos preocupados com as tensões entre o Brasil profundo e a pós-modernidade, se revelem ao mesmo tempo as experiências mais ousadas do ano. Os franceses talvez chamassem o projeto de Paula Gaitán de film fleuve, ou “filme-rio”, por constituir um fluxo contínuo que não retorna mais (termo geralmente aplicado a obras de longa duração). Ora, ao contrário dos rios onde não se banha duas vezes nas mesmas águas, o projeto não para de voltar sobre seus passos, retornar ao início da narrativa, ao início do cinema, ao início de uma ideia de Brasil. Possivelmente, Luz nos Trópicos será conhecido como “o filme de 4h20 de duração”, porque a experiência do tempo ainda intimida, rompendo com as convenções tácitas de que um longa-metragem deveria ter 90-100 minutos. Espera-se que o projeto longo seja difícil, lento, repetitivo, “desnecessário” (mas o que é “necessário”, no sentido estrito do termo, dentro do cinema?). Seria mais justo pensar na experiência proporcionada pela duração. Alguns filmes de 70 minutos soam intermináveis. Outros exploram sua extensão para trabalhar um volume expressivo de ideias, imagens e discursos. É o caso deste projeto que vai muito além da aparência anedótica de sua duração. Há uma ruminação preciosa sobre nossas raízes, sobre a constituição do indivíduo e da nação. Posto que se fala em transições, associações e processos, uma frase de Geraldo Sarno, a propósito de Sertânia, serviria muito bem para representar a proposta ao mesmo tempo simples e extremamente complexa de Paula Gaitán: “É isso que eu faço: penso sobre o homem brasileiro”.
Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 9 |
Chico Fireman | 8 |
Lucas Salgado | 7 |
Cecilia Barroso | 7 |
MÉDIA | 7.8 |
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