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Crítica


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Sinopse

Três pessoas que moram numa cidade rural brasileira aparentemente não têm nada em comum. Embora elas sequer se conheçam, são afetadas de alguma maneira pelo desaparecimento misterioso de Madalena.

Crítica

Um corpo feminino jogado em meio à plantação de soja. Madalena foi assassinada. A cena inicial revela esta descoberta sem alarde, durante uma longa sequência em que emas passeiam pelo terreno. Carros passam ao redor, sem enxergar o cadáver. Crianças brincam de bola neste espaço, e tampouco cruzam o caminho da mulher transexual morta. Para relatar que “o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo”, conforme lembram os letreiros finais, o diretor Madiano Marcheti opta por um caminho curioso: o retrato da banalidade destes crimes. Primeiro, o desaparecimento da jovem seria desprezado por afetar os negócios, causar má impressão, prejudicar os planos políticos dos fazendeiros que controlam a plantação. Segundo, porque outras mortes por feminicídio e pedofilia ocorrem na cidade, razão pela qual este episódio perde o caráter de choque. Terceiro, porque ninguém se importa tanto assim com a perda desta habitante de uma região movida a dinheiro e poder, preocupada em valorizar a feminilidade sensual em videoclipes sertanejos e a masculinidade em casas noturnas e academias. Se o Brasil constitui um país conservador, o filme se volta a uma área ainda mais tradicionalista: o mundo os agroboys, barões e patricinhas do Mato Grosso. Neste local, convém fechar os olhos à sina da protagonista.

O descaso com a tragédia é representado por três habitantes locais, cada um ocupando um dos atos do roteiro, em segmentos autônomos: Luziane (Natália Mazarim), jovem mulher cisgênero a quem a falecida devia dinheiro; o rico herdeiro Cristiano (Rafael de Bona), focado em se livrar do corpo com rapidez, para não prejudicar os negócios familiares, e Bianca (Pamella Yule), uma colega travesti encarregada de cuidar dos pertences após a morte. Ninguém demonstra preocupação ou tristeza com o caso, reduzido à condição de mera manchete de jornal, uma fatalidade sem responsáveis. Não por acaso, os policiais jamais iniciam uma investigação. Percebendo o sumiço da mulher, Luziane se cala e segue com a vida, sem alertar as autoridades. Cristiano sequer se importa em descobrir de que maneira o corpo foi parar nas plantações, partindo ao modo defesa. Mesmo Bianca distribui os objetos da amiga com a placidez de quem doa objetos próprios. Ao invés de se focar no preconceito diário, nas dificuldades familiares e profissionais, o autor prioriza a invisibilidade e a hipocrisia social, através de uma galeria de personagens que vão do apático ao asqueroso (caio de Gildo, interpretado por Antônio Salvador).

O problema é que o longa-metragem tampouco demonstra sentimentos pela vítima abandonada ao chão. É claro que a narrativa não precisaria revelar as circunstâncias do crime nem evocar o passado da heroína em chave clássica. No entanto, para se opor à indiferença desta juventude materialista, seria preciso encontrar formas metafóricas de fazer com que Madalena impregnasse a história, ainda que longe das imagens. A lógica da representação pela ausência já produziu belíssimos filmes centrados em personagens indisponíveis, mas em torno dos quais girava a ação. Eles foram ilustrados, nestes casos, por seus traços nas casas, na comunidade, pela dor provocada em terceiros, pela lacuna deixada no trabalho, na família, na vizinhança. Eles podem se revelar pelos objetos, pelas músicas, pelas lembranças alheias, permitindo deduzir a importância de uma pessoa que se foi. Ora, a travesti assassinada é deixada em segundo plano no projeto que porta seu nome. Nunca descobriremos a vida desta mulher, nem de maneira sugerida, indireta, poética. Ela se apaixonou? Possuía vínculos profundos com outras pessoas da região, para além das amigas que evocam um único episódio cômico com Madalena antes de pegarem seus pertences e deixarem a casa?

Falta ao longa-metragem a sensação de pesar, raiva, indignação, surpresa, ou qualquer potência emotiva relacionada ao crime. Paira a impressão incômoda que o olhar da mise en scène se identifica com a placidez burguesa de seus personagens: as raras menções à mulher trans são entrecortadas por cenas autônomas destes jovens usando anabolizantes, trabalhando na casa noturna, se divertido na rua enquanto meninos passeiam de moto, e dando uma volta de carro. A vida continua tranquilamente para essas pessoas, aponta o roteiro com insistência. Entretanto, falta dar um passo adiante: e o olhar da direção, o que pensa a respeito desta postura blasé? O letreiro evocando a violência com pessoas trans se torna insuficiente para condensar todo o discurso político. Em se tratando de um homicídio e de uma crônica da desigualdade, teria sido fundamental dissociar a perspectiva da direção daquela dos sujeitos criticados. A comunidade local relega Madalena à margem, cabendo ao cinema colocá-la no centro das atenções. O mundo poderia virar as costas, mas o cinema teria que lhe dar a devida atenção, o protagonismo e o controle do ponto de vista. Como nos identificar, ou sentir pena, empatia, saudade por uma figura que nunca conhecemos - um corpo sem personalidade, subjetividade, individualidade? O anonimato da mulher trans prejudica o discurso que se pretende progressista.

Embora falhe na responsabilidade moral com sua protagonista morta, o filme demonstra a louvável capacidade de captar pequenos traços cotidianos desse Brasil retrógrado. Os grupos de família do WhatsApp espalhando notícias falsas e sensacionalistas; o machismo estrutural; o coronelismo da política de cidades interioranas e a impressão de inércia no elevador social são bem ilustrados por Marcheti. Nota-se, em paralelo, a tentativa tímida de opor a vida no campo (simbolizada por um ninho repleto de ovos) à morte, convivendo lado a lado. Entretanto, a metáfora jamais se desenvolve, nem contamina a narrativa. O cineasta demonstra amplo conhecimento do mundo retratado, apreendendo-o com intimidade ímpar. Ele conta com bons atores, confortáveis na maioria dos diálogos e das interações em seus nichos respectivos (os homens ricos com homens ricos, as garotas com outras garotas, as meninas trans e travestis com outras meninas LGBTQIA+). No entanto, enfrenta dificuldade em extrair as fricções decorrentes da convivência entre estes núcleos. A separação em atos isolados convém à montagem e ao roteiro, porém dificulta a contextualização da morte de Madalena. O filme se encerra com uma potente descrição dos opressores, mas uma representação falha dos oprimidos.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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