Crítica
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Sinopse
Uma extravagante avó de 90 anos e seu neto cineasta se debruçam sobre as questões que giram em torno do afeto e da sexualidade num ambiente patriarcal.
Crítica
Há algumas estruturas facilmente reconhecíveis no documentário Senhora (2019). A primeira delas diz respeito ao filme de família: o diretor Stéphane Riethauser promete narrar a história da avó, mulher que venceu o machismo do início do século XX para se tornar artista e empresária. A segunda, decorrente da primeira, corresponde ao filme-homenagem. Não basta ao cineasta demonstrar que a avó existiu e marcou a sua vida, ele também faz questão de revelar os melhores aspectos dela (o fato de ter sido uma “mãe ruim” é mencionado, mas jamais desenvolvido), e de oferecer o filme para ela. Diante deste projeto, o espectador se converte num intruso espiando o álbum de retratos alheio – o projeto encontraria seu cenário ideal no sofá da matriarca, projetado na televisão ou sobre uma parede. A terceira estrutura, aplicável às duas anteriores, encontra-se no filme-carta: Riethauser narra o documentário inteiro, supostamente oferecendo uma carta aberta de amor à avó. Na verdade, o recurso jamais esconde a sua natureza retórica, visto que o roteiro é saturado de informações que tanto Stéphane quanto a querida avó conhecem muito bem. A única função da pretensa carta consiste em informar o espectador sobre temas que a imagem não consegue apresentar por si mesma.
A retórica domina o projeto como um todo. Após vinte minutos de frases doces sobre a biografada, a narrativa a deixa em segundo plano, e o cineasta passa a falar do que realmente lhe importa: a si mesmo. A avó retorna em momentos pontuais, no entanto, as tímidas tentativas de unir a trajetória de ambos (qual seria o ponto de contato entre uma mulher heterossexual nos anos 1920 e um rapaz homossexual na Suíça dos anos 1990?) são abandonadas pela montagem. Não parece muito honesto com o público, e muito menos com a avó, utilizá-la como isca para adentrarmos no projeto, descobrindo então que as cartas abertas constituíam, de fato, um diário pessoal. Riethauser possui um único conflito central a abordar: a descoberta de sua homossexualidade. Ele evoca cada garoto que conheceu, cada colega de escola por quem ficou apaixonado, cada vez que saiu com alguma garota para enganar a si mesmo. Este percurso de amadurecimento poderia transparecer complexidade psicológica e ousadia estética, no entanto, o diretor não investe em nenhum dos dois, preferindo o tom descritivo. O diretor-narrador-personagem-principal-e-eu-lírico elenca rapazes como fatos, espécie de passagens obrigatórias de seu currículo afetivo. “Então eu conheci Marc”, “Então eu me apaixonei por Tim”, “Então me entreguei a um homem pela primeira vez”. Os episódios, ao invés de promoverem um andamento, se equivalem e se repetem.
O projeto se esforça em tratar um perfil do conservadorismo na Suíça. A narração explica que os rapazes são educados para serem machos, violentos e conquistadores de mulheres, enquanto as meninas são criadas para se tornarem princesas, ou seja, esposas ideais e afáveis, permanecendo no lar. Estas constatações são válidas, no entanto, jamais ultrapassam a constatação superficial. De que maneira estes símbolos binários foram estabelecidos, e que movimentos ou fenômenos permitiram que mudassem? Como o machismo e a homofobia se entrelaçam com valores nacionais, partidários, religiosos, profissionais? Riethauser se atém a viradas abruptas no tempo: na juventude da avó, ela foi obrigada a se casar aos 15 anos de idade. Pouco tempo depois, se sustentou sozinha e abriu o próprio ateliê de costura. Ora, o que aconteceu entre os dois? Como a avó passou de uma mulher submissa e uma pessoa emancipada, e como o próprio cineasta abandonou seus preconceitos e se tornou um militante da causa LGBT? Não se sabe. Conhecemos os pontos A e B da trajetória, sem compreender o que os une. Para um projeto de vocação histórica, estas lacunas se revelam particularmente graves.
Ao invés de investigar os meandros históricos, o filme prioriza as cartas pessoais, fotos da infância, vídeos de apresentação na escola. O farto material de arquivo não decorre de um profundo material de pesquisa, afinal, o diretor está falando de si mesmo. Que falta faz um olhar externo à obra em que o diretor e o personagem são a mesma pessoa! Como o espectador pode se investir na pretensa reflexão sociológica se os referenciais imagéticos para tal se encontram apenas no rosto de Stéphane, na primeira namorada de Stéphane, no primeiro namorado de Stéphane? A estética se torna não apenas ensimesmada, mas também kitsch. A narração sussurra frases sensuais a respeito dos garotos (“Eu me lembro apenas de seu perfume de noite de verão”), enquanto fotos de pré-adolescentes se sucedem em tela, e óbvias canções de amor dominam a banda sonora. Um teor folhetinesco domina o projeto, reiterando a incapacidade de adquirir qualquer distanciamento em relação aos fatos narrados. O cineasta não narra os traumas infantis que o fizeram se tornar o homem que ele é hoje – inclusive, uma confissão de abuso sexual surpreende pela inconsequência dentro da trama -, e sim resgata os amores adolescentes como se ainda os estivesse vivendo, por meio de uma voz soft porn que sublinha em excesso os desejos por corpos lisos e rostos imberbes. Talvez haja um caráter perturbador nesta representação do erotismo teen, além do uso de imagens e dos nomes das meninas com quem fez sexo, mas passemos.
Ao final, o diretor fez as pazes com sua sexualidade, o que é ótimo. Ele revela as fotos do namorado, mostra suas participações em programas de televisão, escancara o título do livro que publicou. Documentários biográficos em primeira pessoa são normalmente associados ao narcisismo, mas Senhora eleva a autoapreciação a outro patamar. O amor da avó lhe serve apenas de reconforto – a irreverente senhora foi útil ao filme na medida em que permitiu a Stéphane beijar homens sem sentir culpa. Por meio desse projeto, o cineasta acerta as contas com o passado, num excelente exercício terapêutico, porém raso retrato da homossexualidade e do machismo ao longo do século XX. Um apontamento óbvio, mas talvez relevante neste caso: não é possível tirar lições sobre a sociedade inteira a partir de uma ou duas pessoas. O argumento do tipo “Ah, mas eu conheço uma pessoa que...” geralmente remete às exceções que confirmam a regra. Há momentos divertidos, afetuosos dentro do documentário, sobretudo nas provocações entre avó e neto. No entanto, isso é muito pouco para sustentar um longa-metragem. Resta compreender de que maneira o espectador deveria se apropriar desta história, destas fotografias de infância tão comuns, ou do encadeamento linear de revelações pessoais. Ficamos presos no confessionário do diretor durante mais de 90 minutos – talvez não voluntariamente.
Filme visto online no 8º Panorama Digital do Cinema Suíço, em setembro de 2020.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 4 |
Cecilia Barroso | 6 |
Edu Fernandes | 6 |
MÉDIA | 5.3 |
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