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Sinopse

Anos 30, Lapa, reduto da boemia carioca. João Francisco dos Santos, conhecido como Madame Satã, precisa lidar com um sem número de barreiras cotidianas para fazer valer sua subjetividade num mundo que lhe achata por ser pobre, negro e homossexual.

Crítica

Anteriormente interpretado por Milton Gonçalves em A Rainha Diaba (1974), João Francisco dos Santos, personalidade controversa da boemia carioca dos anos 30, ganhou em Madame Satã a encarnação não menos visceral de Lázaro Ramos. A irascibilidade desse personagem arrefece apenas no palco, no contato com a arte. Alimentando-se das histórias da diva paparicada, o sujeito anseia pelo momento de pisar no local, entendendo que aquele espaço banhado pelas luzes dos holofotes é o único em que pode verdadeiramente se expressar sem recorrer à violência. Fora dali, no cotidiano de uma Lapa tão charmosa quanto instável, ele se manifesta por meio da brutalidade, reagindo como animal ferido por toda sorte de infortúnios oriundos do mundo que lhe vira as costas, sobretudo, por ser negro, pobre e homossexual. É um pária, vivente à margem, ao qual não é dada a possibilidade de experienciar as benesses de uma vida tranquila. A sobrevivência é necessidade urgente.

Contrastando com essa luminosidade sintomática do tablado, evidentemente excepcional numa rotina prioritariamente penumbrosa e desorganizada, o cineasta Karim Aïnouz faz de Madame Satã um filme propositalmente escuro, um reflexo ao mesmo tempo da precariedade material dos espaços representados e da dificuldade que João Francisco tem para encontrar caminhos menos turbulentos para continuar respirando. Na cena inicial, que ganha continuidade próximo ao encerramento do filme, o Estado define como bem entende esse homem negro então atordoado pelas bordoadas recebidas pretensamente com justiça a fim de punir os seus “pecados”. São rótulos desferidos por uma voz masculina que simboliza a sociedade brasileira hipocritamente equilibrada sobre a fragilidade do discurso da democracia racial. Esse marginalizado sofre por ser quem é, mas demonstra uma garra muitas vezes exacerbada em agressividade a fim de suportar o entorno que o achata diariamente, empurrando-lhe a uma existência de malandragem como subterfúgio para persistir.

Madame Satã busca sustento nessa natureza geniosa do protagonista vivido por Lázaro Ramos. O ator baiano dá intensidade à personalidade que flertou com a criminalidade em seus 76 anos de vida. Desorientado por uma incapacidade de aquietar-se, fruto de uma configuração social amplamente desfavorável, João Francisco alterna instantes de cólera e afetuosidade. Em casa, como núcleo duro de uma família nada convencional, se derrete de amores pela filha da prostituta Laurita (Marcélia Cartaxo), porém é capaz de, num momento subsequente, lançar sua raiva sobre a fiel companheira de rotina. Tabu (Flavio Bauraqui), igualmente um morador da casa, é da mesma forma vítima dessa oscilação de humores e condutas. Ora é instado a rir desbragadamente de um exitoso plano conjunto, ora se resigna a sua posição de subalterno, pois explorado por Satã que, assim, se torna um cafetão rigoroso. Essa dinâmica é complexa, não dada a julgamentos e afins.

Passando ao largo de estudar a psique do personagem, Karim Aïnouz evita pinçar no passado de João Francisco dados que justifiquem a inquietude. Todavia, a construção narrativa de Madame Satã é tão habilidosa que fornece subsídios à compreensão de parte significativa das mazelas abatidas sobre essa singularidade pulsante. A Lapa, reduto de uma fauna peculiar, é desenhada como espaço de reunião dos forçosamente apartados, no qual prostitutas, cafetões, malandros, carentes, homossexuais e outros conseguem comungar. Mas, inclusive para além dessa vibração do bairro nos anos 30, da potência do retrato social que diz muito sobre o profundo Brasil dos preteridos, há o desempenho fenomenal de Lázaro Ramos, encarregado não apenas de mostrar o comportamento do protagonista como um produto de sistemáticas exclusões, mas também de apresentar uma figura fascinante, uma inveterada amante da arte e desejosa de salvação por ela.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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