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Crítica
Anke (Anke Bak) se aposenta após décadas de serviços prestados à igreja da pequena cidade alemã onde mora. Uma vez que é viúva e os filhos possuem suas respectivas casas, o que resta para ela preencher os dias? Madeira e Água inicialmente se assemelha a uma autoficção – quando alguém se interpreta em situações que tendem a mesclar ficção e realidade ao ponto de borrar fronteiras. Em vários outros momentos do longa selecionado à 45ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo parece que estamos assistindo a um documentário clássico sobre a rotina da senhora enquanto ela imagina como proceder agora que não há nenhuma obrigação orientando a sua rotina. A encenação característica e a atuação minimalista de Anke Bak, mãe do cineasta Jonas Bak, provocam a dúvida. Mas, estamos realmente diante de uma ficção que empresta do documentário traços essenciais. Vemos a protagonista telefonando aos filhos – duas mulheres e um homem – para marcar uma reunião familiar a fim de celebrar o futuro. Tudo é capturado pela câmera impassível que se mantém contemplativa e atenta ao cenário. As falas são simples e as perambulações seguem a mesma lógica. Anke dialoga sobre a beleza do passado, “lendo” a casa da juventude como símbolo de algo lindo que se foi. E isto acontece fora de quadro, enquanto as lentes se detêm justamente no que a protagonista cita em suas falas.
Existe um clima de calmaria quase inabalável no começo de Madeira e Água, inclusive porque o cineasta não insinua qualquer conflito maior ou uma perturbação significativa. Claro que existe algo no grande “e agora?” de Anke, mas a dúvida/indagação tampouco é enfatizada como motivadora de uma jornada de conhecimento ou reconhecimento a ser cumprida. E é apenas mais à frente, quando são estabelecidos os contrastes, que teremos uma noção melhor sobre a serventia dessa fase de apresentações que se dá ao sabor de cenas vagarosas e dos vislumbres da natureza. O único filho homem de Anke mora em Hong Kong e infelizmente ficou preso com a família no aeroporto por conta de protestos que reivindicam democracia. Como Maomé não pode ir à montanha, é exatamente a Montanha que vai até Maomé. A senhora de cabelos brancos e gestos moderados embarca num avião rumo à região oriental inteiramente oposta ao local onde mora. Aliás, a transição entre a Alemanha bucólico-interiorana e a movimentada Hong Kong se dá numa elipse lindíssima. A câmera contempla, em movimento, o teto de um túnel europeu e quando o veículo finalmente alcança a luz já estamos do outro lado do mundo. É exatamente esse corte que deixa mais palpáveis as intenções do filme. Anke é uma completa estranha àquele cenário cintilante e efervescente. E ao lado dela acessamos o novo.
Esses choques entre o passado e o futuro, entre a tradição e outros paradigmas, não ocorrem simplesmente em episódios repletos de ações e reações. Jonas Bak se esforça para incutir no tecido narrativo de Madeira e Água essa divergência existencial. E o simples salto de uma realidade a outra já deixa engatilhados os prováveis curtos-circuitos, sobretudo tendo em vista que a representante do Velho Mundo está no admirável Novo Mundo que se anuncia no Oriente. A metade europeia do longa-metragem é caracterizada pela onipresença de uma natureza grandiosa, principalmente as árvores frondosas que ladeiam as estradas e os rios encarregados de tornar as vistas belas e tranquilas. Já a metade oriental é marcada por signos opostos, tais como os prédios enormes, não menos fundamentais à paisagem local, e uma agitação da qual Anke evidentemente destoa. Na Alemanha os cenários contêm matizes próprios aos campos naturais (verde, azul, terroso, tons de madeira, etc.). Em Hong Kong o que predomina é o cinza do concreto e a insipidez do alumínio. Mais do que estabelecer disputas diretas sobre modos de vida, aspectos sociais discordantes ou quaisquer outras possibilidades mais frontais de embate, o realizador investe numa disputa sensorial. Na cidade convulsionada que acolheu seu filho, Anke é atraída pelo ímpeto do povo de protestar. Porém, Bak não enfatiza se isso a comove e porquê.
Seguindo a ideia geral da aproximação com o documentário, Madeira e Água acompanha de modo cru as perambulações da alemã por uma cidade que lhe parece fascinante. Se há algo que deponha contra o conjunto é o fato dele ser excessivamente dependente de apenas uma ideia: o choque profundo e inescapável entre as realidades/mundos visto do modo plácido. Porém, esse tom único é compensado pelo desenho sensível dos acontecimentos. Uma vez que Anke é estrangeira em Hong Kong, podemos pressupor uma série de imprevistos gerando pequenas crises. Logo em sua chegada, o desencontro com o filho a impede de entrar no apartamento. E isso não chega a criar uma tensão enorme, pois a mulher rapidamente consegue um quarto compartilhado de hotel, onde conversa com uma garota de perspectivas diferentes – jovem e idosa: outro contraste. Ao sair à rua, Anke pode ser perder, não? Claro. E quando isso efetivamente acontece ela é auxiliada por desconhecidos prestativos. Calculadamente frustrando as nossas expectativas quanto a que poderia acontecer à estrangeira interiorana à deriva numa cidade caótica em outro continente, o cineasta entende a protagonista com um peso simbólico. Ela enxerga o futuro com um misto de euforia contida e preocupação. É algo sugerido na conversa com o médico local sobre a ansiedade e a depressão que acometem o filho (que nunca vemos): “fruto dos nossos tempos”, diz ele. No fim das contas, mesmo que a sobriedade flerte com o marasmo e a apatia, temos ali uma reflexão muito bonita.
Filme visto online durante a 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.
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