Crítica
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Crítica
Há um forte estatuto político nos filmes de Pedro Almodóvar. Mas, as posturas dessa natureza não aparecem tanto nos discursos, estando mais impregnadas nos exercícios cotidianos das pessoas. O “fazer política” dos personagens almodovarianos é uma prática diária e espontânea, uma atitude umbilicalmente atrelada ao simples existir. Sim, pois são as mulheres que sobressaem numa sociedade machista, os membros da comunidade LGBTQIA+ que reivindicam o direito à plenitude de serem quem são, os corpos enxergados como desviantes/estranhos por uma sociedade ainda demasiadamente atolada num conservadorismo excludente e mortal. Tanto que no começo da carreira do cineasta espanhol, os filmes eram exagerados, transgressores, recheados de figuras que questionavam com atos e gestos esse semblante sisudo do mundo que os circundava. Aos poucos, a explosão de cores, sabores e acentos carregados foi sendo adequada às outras meditações de Almodóvar: sobre a veemência quase imperativa do amor romântico (Carne Trêmula, 1997) e a imensidão do amor materno (Tudo Sobre Minha Mãe, 1999), para citar apenas dois situados no que podemos chamar de segunda fase de sua carreira. De uns tempos para cá, Almodóvar parece mais inclinado a ponderar a respeito da morte, e não à toa isso acontece exatamente depois dele fazer um novo sobrevoo pelas comédias rasgadas (Os Amantes Passageiros, 2013). Mães Paralelas é parte muito coesa dessa preocupação da maturidade.
Se pegarmos como base dramas recentes como Julieta (2016) e Dor e Glória (2019) – depois do brilhante exercício de horror A Pele que Habito, 2011) –, veremos que o histrionismo presente nos filmes iniciais de Almodóvar cedeu o seu lugar a um tom mais pesaroso, especialmente quando os personagens olham para o passado que deixou feridas ainda abertas. Por isso não é de todo estranho que Mães Paralelas comece com a protagonista, Janis (Penélope Cruz), conversando com um antropólogo sobre a história silenciada de violências contra as pessoas do povoado onde nasceu. Seu bisavô foi capturado por membros da Falange Espanhola, organização política de inspiração fascista. Foi apartado da família, assassinado e enterrado numa vala comum junto a outros “esquerdistas”. O roteiro não entra nos pormenores políticos, mas dá informações suficientes para compreendermos o contexto que, aliás, é bastante semelhante ao dos demais países que foram governados por fascistas e ditadores sanguinolentos – como o Brasil durante mais de 20 anos. A fotógrafa Janis, aquela que vive de eternizar momentos, pede a Arturo (Israel Elejalde) ajuda para que os parentes desses homens desaparecidos tenham a oportunidade de enterrá-los com dignidade. Cultivando um claro flerte entre Janis e Arturo durante essa conversa áspera, Almodóvar acelera os processos e logo nos apresenta eles transando e, numa elipse violenta, Janis grávida na maternidade prestes a dar à luz à filha desse encontro.
Mas, o que uma coisa tem a ver com a outra? Mães Paralelas elege a maternidade como o centro da manifestação política que aqui aparece de modo declarado, como em nenhum filme anterior de Pedro Almodóvar. O realizador funde os anseios das mulheres (a que decide ser mãe e a levada a essa condição depois de sofrer uma violência silenciada), sempre mantendo em perspectiva a oposição entre os ansiosos pela verdade e os alienados que contribuem para adicionar novas camadas de terra sobre os cadáveres esquecidos. A filha de Janis nasce com traços sul-americanos que não condizem com os do pai e tampouco com os dela, o que engatilha o mistério. A justificativa seria que a menina herdou os traços do tal bisavô desaparecido, de quem ninguém tem fotografias, somente descrições. É a partir dessa encruzilhada propícia a gerar conflitos familiares de várias ordens e situações melodramáticas que Almodóvar nos torna cúmplices da personagem de Penélope Cruz. Apenas nós e ela sabemos o que está acontecendo durante o processo de investigação que ameaça transformar as famílias recém-formadas pelos nascimentos. O novo está em perigo, vejam só, e apenas a mentira pode manter as coisas como elas estão. A verdade, por outro lado, tende a causar dor, mas liberta. Em certo momento Janis diz à amiga “é preciso saber de que lados seus pais e avós lutaram”, chamando a menina alienada à responsabilidade de pensar sobre as suas raízes históricas. E a jovem não é alienada por ser jovem, mas por suas raízes estarem fincadas num solo rico em alienação, vide a confissão da mãe "apolítica".
A proximidade de Janis e Ana (Milena Smit) acontece por acaso, uma vez que elas se encontram na maternidade exatamente no dia de darem à luz. Almodóvar estabelece entre elas um elo inquebrantável ao alternar (pela montagem) as suas dores durante o trabalho de parto. É como se a partir dali estivessem ligadas pelo destino e por essa capacidade milagrosa de gerar vida. Tanto que a conexão entre as duas vai ganhando contornos diferentes durante o processo de investigação genética que somente Janis e nós, espectadores, sabemos que está acontecendo. Aliás, é curioso como em nenhum momento da trama os elos afetivos de Mães Paralelas sejam problematizadas ao ponto de comprometerem o protagonismo dessa associação entre a maternidade e a ancestralidade espanhola num sentido amplo e às vezes doloroso. A relação extraconjugal passa muito longe de se transformar numa questão a ser debatida, o mesmo acontecendo adiante com o envolvimento sentimental e sexual entre duas mulheres. O foco permanece nesse suspense em que a verdade vai se tornando um fardo pesado, no qual o dilema moral ganha espessura de thriller, um que utiliza a própria História como nobre pano de fundo. Para isso, Almodóvar recorre a velhas estratégias/figuras do melodrama que ele conhece bem, tais como: o homem casado que justifica a sua ausência pela doença agressiva da esposa, as mães excêntricas e as disputas familiares nas quais visões opostas da realidade colidem constantemente.
Mães Paralelas é talvez o gesto mais abertamente político da carreira de Pedro Almodóvar. Se antes essa postura estava diluída no comportamento e na existência dos personagens (especialmente os marginalizados), aqui o impasse de Janis sobre contar ou não uma verdade que ameaça a sua maternidade é associada diretamente ao apagamento de personagens que morreram simplesmente por divergir de grupos no poder ou que o almejavam. Como de costume, temos todo o substrato melodramático caro a Almodóvar (decepções, mentiras, amores escondidos, paixões avassaladoras), mas ele está a serviço dessa meditação pesarosa que lê conjuntamente maternidade, hereditariedade e pertencimento, tanto no âmbito micro (Janis e tudo que a cerca) quanto no macro (a história da Espanha). E é impressionante como Penélope Cruz engrandece ao ser dirigida por Almodóvar. Aqui ela faz de Janis uma personagem que nos convoca à reflexão sobre a ambiguidade e as contradições do comportamento humano. Já ao nos colocar estritamente ao lado dela durante a jornada de incertezas, Almodóvar convida a pensar sobre o poder da verdade e a dificuldade de estabelecê-la como prioridade. Janis sabe que pode ter sua família destruída pela revelação de certos fatos, mas ainda assim acredita neles como o único caminho, mesmo tendo suas dúvidas. Ela é assim coerente com o que está implicado em sua busca pelos restos mortais do bisavô. Some isso ao dilacerante final com mulheres se deparando com seus mortos e teremos o gesto mais declaradamente político da carreira de Almodóvar.
Filme visto durante o 23º Festival do Rio, em dezembro de 2021.
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Fotografia linda, um fiapo de história onde os dois principais assuntos do filme se diluem feito um nescafé.
Spoiler é nome da crítica. Nem precisa mais assistir, ele contou até o final! Rsss De qq forma, é coerente e fiel ao filme, que por sinal adorei, como todo e qq Almodóvar. Só achei ele beeeem rigoroso no quesito estrelas. O que um filme deve ter pra ter 5 estrelas?
👏🏽👏🏽👏🏽Tão bom ver um filme desses e ler uma crítica dessas :) !🤩