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Sinopse

Mikaël é um médico que se dedica ao trabalho com pacientes viciados em drogas e em situação de vulnerabilidade social. Graças ao primo farmacêutico, envolve-se num esquema ilegal de receitas falsas. Uma noite, os planos dão errado e forçam Mikaël a tomar uma decisão.

Crítica

Madrugada em Paris (2021) se esforça para ser um filme sombrio, cinzento, de atmosfera inóspita. Os personagens vestem grandes casacos e possuem o corpo curvado de quem sente o peso das jaquetas sobre os ombros. Suas expressões são cansadas, derrotadas. Enquanto isso, investem em relacionamentos frustrados, empregos falidos e esquemas de corrupção prestes a ruir, ao longo de uma noite fria, úmida, desagradável. O diretor Elie Wajeman se esforça em criar uma atmosfera claustrofóbica, ainda que parte considerável da aventura se desenvolva ao ar livre. Não há um único personagem contente ou leve dentro desta proposta de um filme noir situado no universo da venda ilegal de medicamentos. O médico Mickaël Kourtchine (Vincent Macaigne), que entrega receitas falsas para ajudar o primo farmacêutico (Pio Marmaï) e enfrenta a perseguição do controle de saúde municipal, ocupa a posição de protagonista de um filme de máfia, na acepção ampla e contemporânea do termo. Em pouco tempo, as negociações entre atendentes e seus pacientes incorporam um teor agressivo, envolvendo revólveres e chantagens.

A narrativa se inicia quando as ações estão em andamento. A estratégia mais comum para longas-metragens clássicos consiste em apresentar o herói, introduzir o conflito, e então acompanhá-lo na luta contra as adversidades. Aqui, é o espectador quem chega tarde, introduzido abruptamente no meio do caos. Demora-se algum tempo até compreender quem são aqueles homens e mulheres, qual relação possuem uns com os outros, e há quanto tempo suas crises crônicas se mantêm. Há certo paralelo entre a produção francesa e o norte-americano Joias Brutas (2019), outro drama com aparência de thriller, focado num sujeito de moral ambígua, perambulando pela noite entre vendedores, compradores e possíveis agressores. A exemplo de Howard Ratner (Adam Sandler) no filme dirigido pelos irmãos Safdie, Mickaël precisa atender vários clientes, encontrar compradores de suas receitas, visitar a mãe de seus filhos, declarar seu amor à amante, negociar valores com o primo e comparecer a uma festa de aniversário, tudo isso no espaço de poucas horas, ao longo de uma última noite. O homem nunca para, sendo acompanhado pela câmera inquieta. Telefones tocam com frequência e os carros rodam a toda velocidade. A dinâmica de várias ações simultâneas agrada ao criador, que ocupa seu médico ao limite da estafa. Multiplicam-se os indícios de que a situação terminará mal, encaminhando-se rumo a uma inevitável explosão.

Infelizmente, a busca pelo ambiente sinistro se dilui em escolhas didáticas de diálogos e imagens. Na primeira cena, o protagonista é confrontado por um sujeito que se declara “contra os sentimentos”, em óbvia oposição ao médico preocupado genuinamente com a saúde dos pacientes. Poucas cenas depois, ele será chamado de “santo dos toxicômanos”, depois de uma quantidade expressiva de diálogos indicando o posicionamento deste homem em defesa deste grupo social. Adiante, uma fiscal questiona se a receita de medicamentos relacionados à dependência química estaria ligada a uma defesa política, ao que Mickaël responde que sim, repetindo seu discurso ideológico. Depressivo, ele se vira à amiga e confessa: “Sinto que estou afundando. Isso não é coisa boa”. Quando se converte num sangrento filme policial, por volta do terço final, os gângsteres se expressam através de chavões desgastados: “Eu vou te achar e vou te matar!”, “Dê o fora antes que eu te mate!”. O longa-metragem se contamina pela vontade crescente de explicitar relações compreensíveis por si próprias, dispensando o apoio de trocas tão banais. Outras coincidências incomodam — vide do fato de a amante do herói ser a noiva do primo. Um universo de conveniências facilita o trabalho do roteiro, porém enfraquece a verossimilhança.

Madrugada em Paris começa a se bifurcar em duas vias: uma parte se identifica com o realismo social, onde convivem a esposa Sacha (Sarah Le Picard), os colegas médicos atendendo numa van pelas ruas e os pacientes noturnos em suas casas de classe média. A outra parte se encontra no imaginário do crime sedutor e perigoso, povoado por mulheres fatais de vozes sussurradas e infantis (Sara Giraudeau), traficantes perigosos de ascendência árabe, pequenos ladrões de forte sotaque periférico e mulheres drogadas sexualmente acessíveis, buscando no médico uma figura paterna (caso da jovem interpretada por Lou Lampros). Em outras palavras, um universo próximo ao real se descola do outro, idealizado, marcado pelo imaginário popular do mundo do crime. Em comum, têm apenas a crueza, os tons cinzas e a presença de Mickaël enquanto ponte. Num primeiro momento, o drama impera sobre o noir fetichista, mas conforme a trilha sonora se acentua, as lágrimas escorrem e as armas saem dos bolsos, a estrutura da máfia domina por completo a iniciativa. Neste processo, o personagem repleto de contradições ideológicas e morais deixa de se confrontar a estas decisões para se tornar mero sobrevivente, e por fim, um mártir da causa. A razão e o questionamento cedem espaço às emoções e ao impacto de cenas espetaculares.

Ao menos, Vincent Macaigne se mostra um ator versátil, capaz de abraçar o papel distante dos tipos fracassados e dóceis que costuma interpretar. Ele evita vilanizar ou romantizar o protagonista, deixando essa tarefa a Wajeman, que se delicia com um zoom in no instante sentimental da confissão amorosa, além da “subida aos céus” representando o olhar divino. As mulheres recebem um tratamento pouco elogioso, restringindo-se ou à figura da santa (a mãe-esposa, comportada e sem sexualidade) ou à figura da prostituta (fácil, fogosa, imoral). O ritmo se revela ágil graças à decisão de condensar as ações durante uma única noite, num projeto com menos de 90 minutos de duração. Ora, talvez falte precisamente o tempo para a contemplação, a reflexão, a possibilidade de mudanças de ideia. O cineasta decide embutir a premissa do drama num suspense policial empolgante. Ele obtém bons resultados no que diz respeito à atmosfera e à concisão, porém perde as nuances e achata a psicologia dos personagens. Mickaël começa dominando a trama, organizando sua vida atarefada e tomando pesadas decisões. Aos poucos, o mundo se impõe a ele, transformando o herói no mártir exemplar de um sistema corrupto do qual, ao que tudo indica, não se pode sair. O teor fatalista poderá ser interpretado como realismo, pessimismo ou conformismo, dependendo do ponto de vista do espectador.

Filme visto no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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