Crítica
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Sinopse
Quatro jovens lésbicas, feministas, anarquistas e não monogâmicas criam um filho de nove anos numa pequena cidade litorânea do Sul do Brasil. Elas encaram frequentemente a ameaça de expulsão por parte da polícia.
Crítica
Primeiro vem o companheirismo, o afeto, a amizade. Um grupo de jovens mulheres carrega imensas tábuas de madeira. Elas se ajudam, cuidam umas das outras, erguem o espaço onde moram. Depois, discutem preços de manutenção e ambições de reformas. Percebemos que algumas delas dormem juntas. Então um menino entra em cena e lança alguma pergunta às mulheres. É interessante que Mães do Derick (2020) descreva as personagens nesta ordem de prioridades e sensibilidades. Teria sido mais fácil apresentá-las por sua singularidade: enfrentando o peso das estruturas patriarcais, quatro mulheres vivem em comunidade e se encarregam coletivamente da criação do garoto. No entanto, a diretora Denise Kelm prefere enxergá-las, inicialmente, pelo que possuem de universal: o carinho umas pelas outras, o senso de proteção quanto ao filho. Somos convidados desde o princípio a nos identificar com Thammy Tk12, Marina Chiva, Bruna Janaina Batagin e Ana Paula Lourenço, ao invés de nos confrontar a um modo de vida que se supõe diferente daquele do espectador médio. A imagem adentra a vida destas mulheres com um respeito admirável.
Além disso, o dispositivo cinematográfico adota um posicionamento preciso: a imagem se encontra próxima o suficiente para constituir uma personagem, como se a direção – e o espectador, por extensão – se convertesse em nova moradora da ocupação. No entanto, ela possui o distanciamento necessário para não intervir de maneira intrusiva naquele meio: as interações ocorrem apesar da câmera, como se ninguém se importasse de fato com a presença do registro. Percebe-se a intimidade entre a diretora e suas personagens, em olhar de sororidade. Quando a mecânica do cinema se assume enquanto tal, ela sublinha o aspecto amador em ambos sentidos do termo: Derick pega uma câmera caseira e apresenta sua rotina, ou então um amigo próximo filma o menino e as mães. A direção de fotografia assume o tom de observação de igual para igual, na altura do olhar daquelas mulheres, permitindo-se reenquadrar e fazer movimentos bruscos dentro da imagem quando necessário. Kelm encontra um saudável meio-termo entre o controle do entorno e a abertura ao acaso.
Neste contexto, a política se traduz em vivência. O filme não precisa gritar por si mesmo palavras de ordem, incluindo narrações explicativas, letreiros didáticos nem depoimentos convencionais. Pratica-se diariamente o feminismo, o respeito à diferença, os cuidados com a natureza, o enfrentamento ao capitalismo, a luta contra a opressão masculina, o posicionamento pelo direito à moradia. Dentro de um roteiro não-linear, as personagens são atravessadas de modo orgânico por estes questionamentos, que constituem partes de uma visão coerente de mundo. Este não é um filme sobre o lesbianismo, sobre ocupações populares, sobre famílias pluriparentais - as causas jamais se colocam acima das personagens. O quarteto ganha espaço para se afirmar em suas particularidades: aos poucos, elas reafirmam os temperamentos distintos, percebidos enquanto compatíveis. A cineasta representa Thammy, Marina, Bruna e Ana Paula enquanto mulheres complexas para quem a natureza, o coletivo, a arte e o ativismo se tornam peças de um mecanismo único. Não existe choque da direção diante de performances coletivas e instantes poéticos envolvendo sangue menstrual, muito menos a romantização prescritiva deste modo de vida. A naturalidade transforma-se num posicionamento político assertivo do documentário.
Em paralelo, Mães do Derick oferece cenas musicais onde Thammy apresenta suas composições de confronto ao sistema. Embora utilize a estética do videoclipe, Kelm jamais permite que estas sequências destoem do restante: elas decorrem da linguagem realista, assim como na lógica dos musicais onde os protagonistas começam subitamente a cantar. Existe uma beleza eficaz nestas cenas compostas, filmadas e controladas por mulheres, entoando em uníssono os versos sobre o orgulho lésbico. A comunicação se situa no meio do caminho entre o sagrado feminino, o rap de confrontação política e uma transcendentalidade ampla, não dogmática. A excelente montagem de Aristeu Araújo permite a euforia e o silêncio, a observação de processos construídos (o sangue borrifado nas plantas) e a apreensão espontânea de um passeio na praia (a magnífica conclusão). O documentário jamais sublinha intenções ou temas, acreditando na capacidade das imagens em falarem por si mesmas. Aliado ao trabalho competente de iluminação (incluindo as cenas internas e noturnas) e captação de som, o resultado demonstra impressionante refinamento para um projeto de pequena estrutura e tamanha abertura à espontaneidade.
Pode-se apontar alguns aspectos mais fracos: a sincronização vacilante da dublagem durante os trechos musicais, uma ou outra frase redundante na conclusão destas cenas (“Nossa, é muito bom ter todas essas mulheres por perto”). No entanto, estes são detalhes diante do comovente álbum de retratos proposto pela cineasta. Basta se deparar com meia dúzia de sequências impecavelmente concebidas e montadas (a Canção da Partida entoada por Derick), ou notar a inserção discreta das mães das mães (as confissões do passado terno ou traumático) para perceber a qualidade destas representações. Trata-se de um excelente retrato político, além de belo cinema de personagens e concepção estética suficientemente ousada para revelar pessoas que fogem aos padrões sociais. A linguagem ajusta-se ao tema e ao material humano, homenageando-o sem se colocar em posição de inferioridade em relação ao tema, nem se impor vaidosamente ao mesmo. Denise Kelm e sua equipe encontram um equilíbrio raro, sobretudo no que diz respeito ao documentário político-social.
Filme visto online no Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2020.
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