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Sinopse

Cinco mulheres tentam levar adiante o hotel da família. No entanto, os traumas do passado insistem em se colocar entre elas, provocando mais afastamento, justamente no momento em que mais precisavam se unir.

Crítica

João Canijo, realizador português mais conhecido no Brasil pelo drama Sangue do meu Sangue (2011), encarou o período de reclusão proporcionado pela pandemia do covid-19 para embarcar um projeto, no mínimo, ambicioso. O resultado foi o díptico Mal Viver (selecionado para a mostra competitiva oficial do 73º Festival de Berlim) e Viver Mal (exibido no mesmo evento, porém uma mostra paralela, a Encontros). Ambos tem como cenário um hotel decadente, e são estrelados por um único elenco. A diferença é que, enquanto este tem como foco as proprietárias do estabelecimento, os motivos que as levaram até essa situação e as relações que as aproximam (e também as afastam), o segundo desenvolve sua narrativa tendo como ponto de vista os hóspedes do local, pessoas que chegam e vão carregando seus dramas e compartilhando os mesmos com estes que eventualmente acabam entrando em contato apenas por alguns instantes (ou horas, ou dias). Fossem dois curtas-metragens, ou mesmo um único longa, dividido entre duas linhas temporais, talvez surtisse um efeito, no mínimo, curioso. No entanto, o formato como agora se apresenta, com mais de 240 minutos de duração juntos, o que se verifica é a exigência de um esforço hercúleo para nesse universo adentrar, sem que o retorno esteja à altura de tamanho investimento.

Eis, enfim, aquela que poderia se tornar conhecida como “A Casa das Cinco Mulheres (deprimidas e sofredoras)”. O ponto de partida é o retorno de Salomé (Madalena Almeida, que não fazia cinema desde Ramiro, 2017). Após ter ficado ao lado do pai até os últimos dias dele, a jovem está pronta para lidar, mais uma vez, com a mãe, Piedade (Anabela Moreira, de Nunca Nada Aconteceu, 2022), uma mulher insegura e instável. O receio dessa pelo reencontro é acentuado pois a filha não está sozinha, uma vez que quem a trouxe foi a avó materna, a severa Sara (Rita Blanco, de A Gaiola Dourada, 2013). Junta-se ao trio as duas principais empregadas, tão íntimas que agem como se da família fossem: Raquel (Cleia Almeida, vista em O Clube, 2020-2021), a camareira, e Ângela (Vera Barreto, de Fátima, 2017), a faz-tudo, da cozinha à limpeza da piscina. Se o envolvimento dessas duas últimas com a trinca principal será menor, ambas quase em posição de observadoras privilegiadas – mas não inteiramente desprovidas de dilemas específicos com os quais lidar), estará nos complicados relacionamentos entre mãe, filha e avó que maior parte da trama irá se concentrar.

Poderia ser uma grande novela, daquelas cheias de reviravoltas, surpresas e desfechos inesperados. Porém, Canijo (também responsável pelo roteiro) está interessado mesmo é em suas personagens e na capacidade destrutiva que cada uma irá exercer na mais próxima. Piedade, ao se deparar com a entrada em cena tanto daquela que a colocou no mundo, como da moça que ela própria foi responsável pela existência, reage como se estivesse diante de dois fantasmas: seres de um passado que a todo custo tentava esquecer, mas que agora retornaram debaixo dos tapetes aos quais haviam sido empurrados para cobrar dívidas há muito relegadas a um segundo plano. O tom de comicidade, tipicamente português, capaz de fazer rir mesmo frente aos maiores absurdos, vem do comentário da garota para uma das atendentes, se referindo à figura materna: “mas ela não larga desse cachorro?”. Ao que ouve como resposta: “este já é o terceiro, são todos iguais”. Alma, o nome do pequeno animal, está sempre a tiracolo, e quando não presente, procura-se por ele aos gritos. Carregando no batismo justamente aquilo que essas mulheres tanto ressentem, massacrando umas as outras como se desprovidas de empatia ou compaixão.

Há muita culpa em jogo. Ângela prefere chorar sozinha por detrás da porta ao ouvir um casal transando na sauna, mas invadir o local para interromper o ato proibido em lugar público, ou buscar satisfações posteriores com os envolvidos, uma vez que reconhece ter outras razões – particulares, principalmente – para tanto se importar com essa quebra de decoro, é algo que não lhe passa pela cabeça. É tudo engolido, porém sem ser processado antes. Sara reconhece o tanto que pensa ter errado com a filha, mas, independente disso, é incapaz de um ato de carinho para com ela. Quando a mais nova invade seu quarto, no meio da noite, pedindo acolhimento, recebe desde um ríspido “não sente à cama, pois assim não consigo estender as pernas” com até mesmo um brusco “mas que pedido esse, não sabes que não é mais criança?”. O comportamento, assim, se reproduz. Piedade também desconhece como se aproximar de Salomé. Quando essa resolve dar umas braçadas ao seu lado logo pela manhã, no horário mais cedo (quando a área de lazer ainda não está aberta aos hóspedes), o que de mais próximo a outra consegue fazer é lhe alcançar a própria touca de banho, afinal, “é proibido entrar na água sem a vestimenta adequada”.

Estão as cinco, a todo instante, buscando por qualquer tipo de aproximação. Mas o fazem de modo tão desajeitado, e até mesmo desastroso, que conseguem apenas provocar um afastamento ainda maior. E quando parecem assumir que, enfim, são incapazes de manter qualquer tipo de relacionamento saudável naquele ambiente, a decisão da mais velha em colocar o hotel à venda e por um fim ao motivo de estarem juntas parece jogar ainda mais fogo em uma fogueira já prestes a explodir. Estas são figuras que se alimentam do que de pior nutrem por si e para as demais. Mal Viver, portanto, não é apenas uma consequência, mas também um estilo de vida – ou de partir, em última análise. Em meio a tanto ressentimento esmiuçado até às últimas consequências, muitos vistos e revirados sem nada de novo acrescentar ao conjunto, a sensação que restará será apenas a do apreço pelo pior, a ânsia pelo desprezo, o descartável enquanto modo de existir sem resistir. Um caminho cansativo, redundante e que busca se valer por si mesmo, esgotando suas possibilidades em um canto escuro do qual pouco restará como proveito.

Filme visto no 73º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2023

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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