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Sinopse

Durante uma de suas missões socialistas pelo interior do recém-independente Mali, Samba conhece a jovem Lara. Mais adiante, eles se apaixonam e precisam lutar contra uma série de convenções e ideais para viver esse amor.

Crítica

O autor francês Robert Guédiguian é reconhecido por seu cinema humanista no qual a consciência de classe e o progressismo desempenham papeis fundamentais. Em Mali Twist ele faz uma visita intercontinental ao passado para expor as contradições no Mali nos anos 1960, um pouco depois da independência do colonialismo francófono. O protagonista é Samba (Stéphane Bak), integrante da juventude socialista que viaja pelos vilarejos disseminando a palavra do novo sistema de governo que pretende substituir o imperialismo de outrora. De certo modo, ele é um missionário que propaga as mensagens de um novo tempo, semelhante a um pregador religioso. Tanto que alguém o questiona dubiamente, “vai novamente pregar no deserto?”, ao mesmo tempo fazendo alusão às manifestações de Jesus no deserto (num país majoritariamente islâmico) e colocando notas de melancolia ao supor que mentes colonizadas são como o solo arenoso onde nada vinga. Aliás, adiante, esse rapaz idealista toma à frente e dá o exemplo aos camponeses desconfiados sobre a importância de preparar uma terra aparentemente infértil para a geração de frutos. A característica mais admirável de Samba é exatamente essa dedicação ao semeio de ideias que possam prosperam e nutrir a árvore frondosa da justiça social. Mas, ele também se destaca pela alegria contagiante, o que gera um paradoxo interessante.

Em certo ponto da trama, Samba se depara com a profundidade das tradições violentas e patriarcais presentes em seu país que, em parte, clama por mudanças. Ele conhece Lara (Alice Da Luz), fugitiva de uma vila na qual fora obrigada a se casar com o herdeiro do líder para evitar que sua família morresse de fome. Lara não aceita submeter-se aos costumes que impõe às mulheres obediência cega e um exaustivo cumprimento de deveres. De certa maneira, ela representa o anseio emancipatório da parcela da população que não está mais disposta a ser tratada como território anexo e servil de uma potência europeia. Lara é o corpo feminino reivindicando autonomia. Porém, Mali Twist não está apenas observando o movimento turbulento rumo à soberania dos territórios antes dominados, pois também demonstra atenção às violências normatizadas pela sociedade construída em torno de anseios notadamente masculinos. Robert Guédiguian é um estrangeiro observando a realidade histórica africana. E ele a encara durante uma transição tensa, impulsionada por choques geracionais e pela dificuldade das classes médias para superar o apego a privilégios. Um dos problemas que Samba enfrenta é o discurso paterno arraigado na lógica capitalista que refuta quaisquer perdas individuais, mesmo que isso represente uma distribuição de renda mais justa e a melhora do bem-estar coletivo.

No entanto, como é de costume no cinema de Robert Guédiguian, as coisas não são tão simples como parecem. Samba não é meramente visto como emblema do novo e seu pai enquanto exemplo de mentalidade que deve ser ultrapassada rumo à prosperidade da sociedade do Mali. O cineasta não carrega nas tintas justamente a fim de não termos pretextos para simpatizar ou antipatizar incondicionalmente com alguém. Verdade que Samba é o tipo do herói com o qual facilmente nos identificamos, haja vista sua paixão desmedida pela política que, aos poucos, é transferida a Lara. Mas, isso não quer dizer que o amor o deixe alienado ou que em determinado momento ele precise escolher entre a razão e o coração. O envolvimento com a amada perseguida pelo núcleo patriarcal de uma coletividade que não vai mudar as coisas de uma hora para outra serve para ele colocar em perspectiva as suas crenças antes inquestionáveis. No começo, Samba parece extraordinariamente seguro de si para alguém que acabou de sair da adolescência. Aos poucos, as diferenças entre o que o novo regime oferece e o que ele cobra em troca começam a criar pequenas rachaduras nessas sólidas convicções. Ainda que a crença na justiça social continue sendo inabalável. Exemplificando o humanismo dos filmes de Guédiguian, Samba se questiona se a disciplina está acima da felicidade numa ordem de prioridades.

Robert Guédiguian faz algo incomum no cinema contemporâneo afeito a demarcações severas de posição. Ele permite que as contradições fermentem ao largo de uma história de amor com ares deliberadamente idealistas e orientada por um envolvimento propositalmente romântico. O Mali que recentemente havia saído de uma opressora colonização francesa contempla seus jovens se divertindo nas casas noturnas ao som o twist norte-americano e vestindo roupas de corte europeu. Em certo momento, o partido socialista pretende criminalizar esse evidente indício de uma dominação cultural em curso, o que nos faz pensar a questão por outros ângulos e entender a sua complexidade sem a restritiva necessidade de chegar a conclusões que excluam quaisquer divergências. Samba e Lara andando de moto por uma Mali instável é uma imagem que remete discretamente (mas remete) a A Viagem da Hiena (1971), um dos ícones do cinema africano pós-colonialista. Se trata de uma espécie de tributo que Guédiguian presta ao colega senegalês Djibril Diop Mambéty para falar sobre os anseios de liberdade dos jovens africanos. Aliás, os protagonistas do filme de Mambéty sonhavam com a prosperidade França e isso não significa alienação quanto à importância da independência senegalesa. Em Mali Twist não há espaços impermeáveis, todos se debatem diante das contradições impostas como escudos pela lógica capitalista. Aliás, se há um vilão neste e nos demais filmes de Guédiguian é o capitalismo. E, mesmo sem sua turma de atores e atrizes do coração, o cineasta reafirma aqui a sua crença no fator humano.

Filme visto no Festival do Rio em outubro de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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