Sinopse
Malu, mulher de meia idade com um passado glorioso, se vê presa em um caos existencial. A complexa relação com sua mãe conservadora e sua filha adulta torna a crise ainda mais aguda, em meio a momentos de carinho e alegria entre as três. Um retrato de uma mulher em busca da melhor versão de si mesma. Selecionado para o Festival de Sundance 2024.
Crítica
Malu (Yara de Novaes) é uma atriz desempregada que vive nos anos 1990 de sonhos e passado. Eufórica ao receber de volta a filha Joana (Carol Duarte), depois de a garota ter passado uma temporada vivendo na França, ela não mede palavras para se expressar. Com uma eloquência sempre recheada de palavrões, essa mulher vive às turras com a própria mãe, Dona Lili (Juliana Carneiro da Cunha), na casa de alvenaria sem acabamento situada numa comunidade pobre do Rio de Janeiro. Figura impositiva e forte, Malu não perde oportunidades para celebrar os próprios feitos pretéritos, as vitórias da época em que ser artista significava perseguição política pelos ditadores que desgovernaram o Brasil por 21 anos. No entanto, fica muito evidente que essa tendência de valorizar o ontem tem diretamente a ver com a dificuldade de lidar com o hoje e a impossibilidade de projetar (de maneira realista) o amanhã. A protagonista de Malu, longa-metragem de estreia do cineasta Pedro Freire, é aquele tipo de presente que poucas atrizes recebem ao longo da carreira. Trata-se de uma mulher expansiva, cativante, às vezes agressiva, profundamente melancólica e volátil interpretada com brilhantismo por Yara de Novaes. Ela é o meio termo da tensão geracional que tem a sua filha num dos polos e a sua mãe no outro. Malu não consegue atender as expectativas de ambas, tanto as da jovem Joana quanto as da velha Lili.
Pedro Freire filma o cotidiano com um misto de pesar e ternura. A dupla presente em cada plano da sua bonita estreia como realizador de longas-metragens é facilmente compreensível quando recebemos a notícia de que Malu é baseado na vida de sua mãe, a infelizmente falecida atriz Malu Rocha. Portanto, a garota vivida por Carol Duarte representa a perspectiva desse filho que, agora como cineasta, constrói a trama também a partir da fina compreensão dos demais personagens. Por mais que esteja fazendo um filme ficcional inspirado na trajetória da própria mãe, Pedro não é do tipo de contador de histórias dado a romantizar ou canonizar as pessoas. Muito pelo contrário. Uma das belezas desse enredo é justamente a sua capacidade de elaborar e desenvolver figuras tridimensionais com defeitos e qualidades equilibrados de maneira sensível para evitar que A seja vilã e B se transforme numa mocinha vulnerável. Por exemplo, para cada momento em que Malu parece completamente injustiçada pela própria filha temos um comportamento reprovável da atriz se encarregando de reequilibrar a balança. E assim sucessivamente até anular a possibilidade de uma leitura maniqueísta do material humano. Numa cena sentimos pena da avó exilada no puxadinho insalubre, na outra imediatamente posterior temos os indícios do que motiva o castigo aparentemente inexplicável e cruel de Malu.
Malu é livre, verborrágica, um dínamo admirado pelas colegas de Joana. “Adoraria ter uma mãe como a sua”, diz a amiga da filha depois de uma noite regada a bebidas, maconha e diversão. Não é preciso que Joana diga algo do tipo “isso porque ela não é sua mãe”, pois essa frase está subentendida no olhar um tanto desconcertado que a jovem lança à sua interlocutora inocente. A construção das personagens em Malu é inteligente, especialmente porque essas mulheres nem sempre estão dispostas a revelar tudo. Aliás, muitas vezes acabam traindo suas reservas por conta de um suspiro, um meneio ou de um gesto indicativo de algo que deveria ficar escondido. Nos momentos de emoção, as pessoas escancaram apenas as coisas superficiais. Já as profundas, aquelas que verdadeiramente causam turbulências, são ocultas a sete chaves. Não por acaso, Malu é tão resistente à ideia de se consultar com um psiquiatra, mesmo ela que, certamente pela cabeça arejada típica dos artistas, não deve ter qualquer traço de negacionismo científico. O que Malu não pretende é ser revelada por inteiro, a não ser, talvez, por meio das personagens que amenizam o baque com as suas cores e máscaras alegóricas. Pedro cria um redemoinho entre Joana, Malu e Lili para liquefazer certos e errados em prol de uma noção menos determinista sobre essas mulheres que sofreram violências em suas respectivas épocas.
Especialmente em sua parte final, Malu acelera um pouquinho demais em direção à resolução de seus conflitos principais. Quando Malu recebe um diagnóstico desanimador, o filme acaba encaminhando o seu encerramento de maneira um tiquinho menos estimulante do que havia se desenvolvido até ali. Porém, isso não diminui a potência dramática desse intensivo penoso na companhia de três mulheres que enfrentam obstáculos enormes para coexistir. Em pelo menos dois instantes do longa-metragem a grande Juliana Carneiro da Cunha emociona e rouba a cena. No primeiro, a revelação de uma atrocidade do passado, sob efeito do álcool e da maconha. Trata-se do plano mais emocionalmente duro da trama, filmado com muita perspicácia por um diretor consciente de que, naquele instante, não há nada mais importante do que o rosto da atriz. E no segundo deles, Lili toma uma atitude que poderia ter custado a vida da própria filha por puro obscurantismo religioso associado à agressividade conservadora. Porém, tendo o cuidado para não forjar vilãs maquiavélicas que possam comprometer o olhar amplo às personagens, Pedro Freire trata de mostrar as fragilidades comoventes dessa matriarca capaz de algo hediondo. O resultado é um filme bonito sobre ilusões perdidas, impossibilidades humanas e sentimentos represados que, muitas vezes, são externados tortuosamente para forjar escudos.
Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024.
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Nossa que narrativa fantástica! Parabéns por tanta elucidação do filme. Hoje, tive a oportunidade assisti-lo.