float(19) float(4) float(4.8)

Crítica


4

Leitores


4 votos 9.6

Onde Assistir

Sinopse

Um mandado de busca autoriza a polícia a entrar em todas as residências de duas favelas cariocas alguns meses antes da Copa do Mundo de 2014.

Crítica

Em 2014, um juiz carioca emitiu uma ordem de segurança que autorizava ‘busca e apreensão’ de modo genérico em uma grande região da comunidade da Maré, no Rio de Janeiro. Esse absurdo jurídico de fato aconteceu, e se tornou notícia de norte a sul do país – e até mesmo no exterior – poucos anos antes das Olimpíadas do Rio, ocorridas em 2016. Foi o que se poderia afirmar parte de um processo de “higienização” da cidade, durante o qual as autoridades, ao invés de lidar com suas carências e debilidades, trataram de empurrar tudo que considerava “feio” ou “vergonhoso” para “debaixo do tapete”. Dessa forma, favelas foram invisibilizadas, regiões afastadas foram urbanizadas à força, espaços comunitários foram invadidos, e assim por diante. Um olhar sobre o ocorrido, uma pincelada sobre suas origens e uma perspectiva histórica sobre as consequências desse fato estão em Mandado, longa dirigido por João Paulo Reys e Brenda Melo Moraes. A abordagem dos dois, não mais do que correta, é, também, contrária ao espírito provocador e de revolta que por vezes ameaça assumir: trata-se de um registro de um episódio lamentável, de forte relevância social, mas frágil enquanto esforço cinematográfico.

Como uma grande reportagem, ou um episódio estendido do Globo Repórter, Mandado inicia sua narrativa, logo após à exibição do incidente que motivou tamanha indignação, com uma não tão breve contextualização. Esse começo, ainda que promissor, acaba dando espaço a um arrefecimento dos ânimos. Se estes se encontravam elevados por uma abertura capaz de provocar sentimentos que vão da indignação à inconformidade, na linha do “como isso foi possível?”, o que vem depois é por demais didático e redundante. Há uma intenção clara em tal redirecionamento: acalmar as expectativas e aprontá-las para o que viria a seguir. O problema é que essa mudança de tom se dá de maneira brusca e demorada. Perde-se tempo em uma investigação no passado, que vai da formação destas periferias até o envolvimento de alguns dos principais personagens. As dúvidas, portanto, começam a se acumular no presente e, mais ainda, no que tange ao futuro. Qual a razão desse entendimento de décadas atrás? Como foi feita tal seleção de entrevistados? Partindo de quais critérios? Se foram tantos os envolvidos, por qual motivo esse ou aquele acabam sendo chamados, em detrimento de outros tão ou mais diretamente afetados?

Por uma questão legal, mencionada apenas brevemente, em uma tela fixa, o juiz responsável pelo mandado em questão não apenas não pode ser mostrado em cena, como também sua participação é radicalmente reduzida. Dessa forma, o filme passa a girar em torno de pontos cruciais, mas não de suas causas ou repercussões. Fica evidente, pela quantidade de profissionais da área reunida pela produção, que a medida pode ser vista como um imenso disparate. Mas o que estaria por trás dela? A quais interesses atendia? E o que a impulsionou a ser levada adiante, mesmo frente às condições improváveis em que se sucedeu? Por mais que o relato tenha caráter político, a menção ao governo nacional é não mais do que superficial – a presidenta do Brasil era Dilma Rousseff na ocasião, do Partido dos Trabalhadores – optando-se por estender este olhar apenas aos responsáveis locais, como o governador do Rio de Janeiro (Sérgio Cabral), o secretário de segurança do estado (José Beltrame) e até mesmo o ministro da justiça (José Eduardo Cardozo) – que, aliás, é o único a citar o nome da líder maior da nação. Ou seja, não se pode negar que informações não faltam. Mas seriam todas elas realmente necessárias? Por quê tanto de um lado, e tão pouco do outro?

Alguns dos depoimentos são particularmente intrigantes. Há o rapaz que lembra, na época ainda uma criança, da invasão policial e da demora destes oficiais em sua residência. Uma outra chega a comentar: “duvido que algo similar ocorresse em um apartamento no Leblon”. São levantamentos importantes, mas que não encontram eco no demais exposto. Como se dá essa diferenciação de classes dentro de uma cidade como o Rio de Janeiro? Outro ponto é o apagamento social motivado pela iminente realização de um evento de alcance mundial, como as Olimpíadas. Muito já se discutiu a respeito e, portanto, questiona-se o que há de novo a acrescentar ao debate. Tristemente, pouco se encontra. Na mesma toada, uma obra de ficção como Mormaço (2018), de Marina Meliande, tem mais a dizer sobre o mesmo tema. Dessa forma, os esforços de Reys e Moraes se mostram contidos, para não dizer tímidos em uma apropriação que deveria ser o norte do olhar proposto.

Alguns poderiam ainda se incomodar com a falta de uma postura mais abrangente, que buscasse entender todos os lados envolvidos, mas essa também não é a proposta. Mandado, porém, até pelo título assumido, parece se direcionar a uma realização próxima aos exercícios realizados por uma cineasta como Maria Augusta Ramos, mas o que se vê na tela é bem menos inquisitivo ou questionador, resignando-se à denúncia direta e aos seus efeitos imediatos. O valor enquanto trabalho jornalístico é válido, e há, não se pode negar, uma urgência que exige maior atenção aos desdobramentos que até hoje, quase uma década depois, ainda seguem exercendo influência. Porém, enquanto obra cinematográfica, eis aqui um conjunto de aparência pálida, que pouco ousa ou explora, ausente de criatividade, que acredita que o viés seria suficiente para dar conta tanto da forma, como também das demais possibilidades envolvidas. Não é apenas indicativo de uma certa preguiça, mas, acima de tudo, de impressionante ingenuidade artística.

Filme visto durante o 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2022)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deRobledo Milani (Ver Tudo)

Grade crítica

CríticoNota
Robledo Milani
4
Maria Caú
5
MÉDIA
4.5

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *