Crítica

Exibido na mostra competitiva do Festival de Cannes, Manderlay foi concebido como o segundo episódio da trilogia Estados Unidos – Terra das Oportunidades, idealizada pelo diretor dinamarquês Lars von Trier, um dos idealizadores do movimento Dogma 95, com Os Idiotas (1998). Von Trier começou esta saga com Dogville (2003), que tinha Nicole Kidman no papel de Grace, uma moça que acaba sendo confrontada às duras penas com os verdadeiros instintos humanos. Ela, que declarou ter tido inúmeros problemas com o cineasta durante as filmagens, recusou participar desta continuação alegando outros compromissos, ainda que tivesse assumido o compromisso prévio de participar dos três longas da série. E como “rei morto é rei posto”, quem aparece em seu lugar é Bryce Dallas Howard, filha do diretor Ron Howard e vista anteriormente em A Vila (2004). Mas as diferenças entre os dois primeiros episódios da trilogia – até hoje inconclusa – estão além da mera substituição da protagonista.

Se Dogville falava sobre incompreensão, tolerância e respeito, o foco de Manderlay está nas diferenças entre brancos e negros e nas novas formas de escravidão elaboradas pela sociedade moderna capitalista. O filme começa exatamente no ponto em que havia terminado o anterior, com Grace e seu pai gângster (Willem Dafoe, ao invés de James Caan) abandonando a cidade de Dogville. Neste percurso, acabam chegando à fazenda de Manderlay, onde um sistema escravagista permanece mesmo após mais de 70 anos de sua abolição. Indignada com o fato, Grace usa da força (os capangas de seu pai) para mudar a situação: ela depõe a proprietária (Lauren Bacall, em pequena participação), liberta os negros e lhes oferece condições para uma nova vida. No entanto, convencida de que somente a liberdade não lhes será suficiente, decide ajudá-los nesta nova etapa. Despede-se do pai e decide permanecer no local, ao menos até acreditar que os novos libertos tenham segurança para seguirem seus caminhos sozinhos.

Ou seja, Grace se transforma numa nova “madame”, comandando a todos e ditando novas regras. Ao invés de alimentá-los em troca de serviço, ela deixa que cada um faça o que quiser, desde que suas necessidades sejam atendidas – e estas tomam quase todo o tempo deles. A plantação, os reparos, as injustiças, a alimentação, o jogo: tudo será pauta de discussão, numa nova situação que ela também precisará descobrir como se adaptar. E enganos serão feitos neste caminho, duras conseqüências que von Trier evidencia com cuidado, sem passar a mão pela cabeça de seus personagens, mas sim tratando-os com uma crueldade que só a realidade poderia oferecer.

O problema de Manderlay, no entanto, é que, no cego intuito de comprovar suas teorias, o diretor acaba dando um tiro no próprio pé. Apesar do início envolvente, a conclusão é pífia e simplista. Ao invés de defender os negros – o que está certo, uma vez que não precisam disto – ele os transforma em vítimas – o que também não é correto. O cineasta vai com tanta força contra um argumento, que acaba justificando-o pelo oposto. Von Trier acusa os brancos dos percalços vividos pela raça negra nos últimos séculos, mas também afirma que estes não teriam condições de se virarem sozinhos na nossa sociedade se não fossem a intervenção dita branca. Ele se esquece que foi a mistura das duas – e demais – raças que fez de nós o que somos hoje, e não somente um mandando no outro.

Mesmo com este percalço, Manderlay ainda é um filme relevante. A discussão que propõe é válida, e as ideias que propõe, sejam artísticas ou culturais, merecem reflexão detalhada. Lars von Trier comprovou em inúmeras ocasiões que não pode ser descartado pela incompreensão do discurso que profere. Somente aqueles que se depararem com maior cuidado e prestarem atenção ao que ele diz é que poderão julgar e aproveitar o que há que instigante ali. Longe da perfeição e de um consenso, muitas vezes deixa sua ânsia pela crítica invalidar sua denúncia – como é o caso aqui, em alguns momentos. Ainda assim, os motivos que o levaram até este ponto merecem ser respeitados. E este filme é a comprovação válida deste argumento.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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