Crítica
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Sinopse
Crítica
Antes de qualquer coisa, é importante remontar ao cenário político-social no qual esse filme visceral, considerado perdido por muitos anos, foi gestado. O cineasta Neville D’Almeida vinha de dois traumas distintos, mas, de certa maneira, irmanados pela repressão oriunda da famigerada Ditadura Civil-Militar brasileira. Seu primeiro longa-metragem, Jardim de Guerra (1970), fora sumariamente proibido pela censura vigente na época, a despeito de ter sido exibido, como devido representante do país, no Festival de Cannes. Logo depois, o realizador viu a sua segunda produção, Piranhas do Asfalto, ser “perdida” no laboratório, em circunstâncias nebulosas. Mangue-Bangue, surge, então, de uma indignação, não apenas a provocada pelos sistemas de repressão reinantes na América Latina, mas uma concernente ao próprio cinema engessado por regras supostamente pétreas e inquebrantáveis. A inconformidade vista na telona, num exemplar singular que passou mais de 30 anos desaparecido, é diretamente atrelada a esse quadro asfixiante de tensão e fúria.
Mangue-Bangue não é de fácil classificação. Sem falas e quase integralmente musicado. Portanto, é na interlocução entre acordes e acenos que o conjunto se estabelece, algo como um brado de libertação cinematográfica, passando desse modo longe das convenções às quais resolvera afrontar. Em dado instante, uma briga feroz entre galos enfezados é sincronizada com a bateria que ressoa pontuando a ação. Noutro, o embate animal adquire sintomas de bailado, justaposto à deambulação de mulher vivida por Maria Gladys como demonstração da força inerente à animalidade que os equivale. Há uma evidente vontade de romper uma lógica comportada, assim dando tela e vez aos marginalizados, vide as tomadas dos travestis do Mangue, região do Rio de Janeiro notabilizada por ser uma área de prostituição. Todavia, a dialética revolucionária de Neville comporta, também, o vislumbre de uma amamentação. Enternecedor e transgressor do viés carola.
Atos de natureza desobediente, como o desembaraço do elenco, desnudado num feito de libertação, se misturam com contravenções, tais como o recurso desavergonhado às drogas ilícitas. Um trio – dentre eles dois sósias de Robert Plant (Frank Zappa?) e Jimi Hendrix – se deixa levar pelo hedonismo e consome desbragadamente um cigarro de maconha. Posteriormente, a trinca se expressa a partir de suas nudezes. Essas cenas são intercaladas com outros registros de cunho próximo ao documental, tais como os supracitados planos de pessoas marginalizadas. Elas são eventualmente contratadas por hipócritas que desfrutam de seus corpos em segredo, mas que defendem a “moral e os bons costumes” em praça pública. Essa noção está ali, intrínseca à forma como a câmera se atém a uma melancolia naturalizada. Nas entrelinhas de Mangue-Bangue é absolutamente possível perceber a inconformidade e a indignação como guia de todos os passos e gestos.
Entretanto, a principal força de Mangue-Bangue está na transformação experienciada pela figura encarnada intensamente por Paulo Villaça – ator que ficou famoso por interpretar o personagem-título de O Bandido da Luz Vermelha (1968), um dos marcos do cinema de invenção. De homem angustiado na efervescente bolsa de valores, ele passa a espécime num encontro com sua selvageria ontológica. Essa metamorfose devolve o indivíduo ao seu estado puro, destituindo-lhe dos bons modos e padrões aceitos. Sujeito bem apessoado, ele se torna um inquieto primata capaz de se autoconhecer a partir dos odores do próprio ânus e de sua glande. O ato de defecar na floresta e imediatamente encontrar higiene, conforto e diversão num riacho, reforça esse estado que poderia, num primeiro momento, ser interpretado como regressivo, mas que, na verdade, é uma evolução em direção ao essencial. A cena dele chafurdando no lamaçal ao sair do antro de tensão e circulação de capital é, sem dúvida, das mais impactantes deste notável filme que troveja até a atualidade como um grito agudo.
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