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Sinopse

Depois de 30 anos do seminal Mangueira do Amanhã (1992), este documentário revisita as agora adultas crianças de outrora. Suas histórias revelam vários problemas da vida social de uma metrópole como o Rio de Janeiro.

Crítica

Em 1992, a diretora Ana Maria Magalhães realizou o curta-metragem documental Mangueira do Amanhã, registrando o cotidiano de um grupo de crianças do Morro da Mangueira em meio aos preparativos para o desfile da escola de samba mirim naquele ano. Passadas quase três décadas, Magalhães reencontra boa parte dos protagonistas de seu curta em Mangueira em Dois Tempos, lançando um olhar retrospectivo sobre a relação desses personagens com o carnaval, com a escola e também com a comunidade. Ostentando um título que se refere não apenas ao aspecto narrativo do tempo, passado e presente, mas também ao rítmico, dos tempos musicais, o longa introduz tal elemento já nos créditos iniciais, trazendo as imagens de músicos em estúdio, com cada instrumento fazendo sua entrada nos arranjos. Entre eles, o repique de Wesley, um dos garotos da Mangueira do Amanhã que hoje ocupa a função de Mestre de Bateria da agremiação verde e rosa.

A princípio, Magalhães caminha pelo campo nostálgico, reunindo os personagens para uma exibição das imagens captadas no início da década de 90. Ao se depararem com suas versões mais jovens, estes iniciam os questionamentos acerca dos sonhos de infância e do contraste com sua realidade atual. Se para Wesley as projeções de um futuro melhor parecem ter se concretizado – em que pesem os percalços descritos ao longo da projeção – para outros integrantes do grupo tais ambições permanecem apenas como memórias afetivas, em particular para a parcela feminina. O desejo das mulheres de se tornarem passistas, madrinhas de bateria ou porta-bandeiras – entre elas a neta de Mocinha, lendária porta-bandeira mangueirense – termina podado pelos mais diversos fatores, incluindo convicções religiosas. O que guardam em comum em relação a seus sonhos desfeitos é a questão da maternidade prematura. “É difícil para criança ser mãe de outra criança”, afirma uma delas, evidenciando o caráter sociológico em potencial da obra.

O retrato da escola de samba como parte intrínseca do universo das favelas cariocas interessa a Magalhães, bem como sua representação como instituição para além do espaço de entretenimento e de pilar cultural, se reafirmando como importante engrenagem social. Uma opção de fuga da violência e da criminalidade. Diversos tópicos desse teor surgem nos depoimentos apresentados, ainda que o escopo de entrevistados seja reduzido. Além dos integrantes da Mangueira do Amanhã, algumas poucas figuras ganham destaque, como a cantora Alcione – madrinha do projeto mirim – e Ivo Meirelles, criador do grupo Funk'n'Lata e ex-presidente da Mangueira, que revolucionou o conceito da bateria carnavalesca ao introduzir elementos do funk – a famosa paradinha – e que teve papel fundamental na trajetória profissional de Wesley e outros garotos, como Bui do Tamborim.

Com a grande quantidade de temas levantados, boa parte termina sendo abordada apenas brevemente, como a já citada questão da religiosidade – o embate da fé contra o “pecado” carnavalesco. Outro tópico pungente é o do papel feminino no universo do samba, um meio ainda majoritariamente masculino e sexista, no qual as mulheres se veem muitas vezes relegadas a uma posição submissa, tendo apenas suas qualidades físicas – a beleza, o corpo – valorizadas. A luta das mulheres para conquistar espaço por seu talento musical, por exemplo, como a filha de uma das entrevistadas, que hoje integra a bateria da escola – o que só passou a ser permitido em 2007 – poderia ganhar mais espaço na narrativa. Isso não ocorre especialmente pelo fato de Magalhães acabar elegendo um protagonista de fato na figura de Wesley, com sua trajetória se tornando o foco narrativo e sua estreia como Mestre de Bateria no desfile de 2019 se transformando em clímax.

Apostando muito mais na força das palavras do que na das imagens – adereços secundários em muitos momentos – Mangueira em Dois Tempos apresenta um conteúdo rico em volume e possibilidades, mas formalmente burocrático. A disposição para captar o espontâneo, o inesperado, o lírico, perceptível nas imagens do curta de 1992, se mostra bem mais tímida neste segundo tempo. A exposição convencional dos relatos prevalece, exceção feita a sequências esporádicas, como as do cotidiano de Bui do Tamborim trabalhando na China ou no clipe da canção de Seu Jorge, que oferece uma amostra mais visual do universo da comunidade mangueirense. De modo geral, mesmo o registro dos momentos musicais resulta acanhado, sem transmitir efetivamente a pulsação do samba – ainda que sirva como amostra do virtuosismo de Wesley e Bui, vide a gravação em estúdio ao lado de multi-instrumentistas como Fernando Moura e Carlos Malta. Há faíscas de intensidade – o depoimento da mãe sobre prisão da filha – e a mensagem sobre o papel do samba como ferramenta social é clara. Contudo, o sentimento que ecoa é o de um potencial reprimido que não se liberta plenamente.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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