float(10) float(4) float(2.5)

Crítica


5

Leitores


4 votos 5

Onde Assistir

Sinopse

Ralphie entra em crise quando recebe a notícia da gravidez de sua namorada. Em meio a esse turbilhão de sensações, ele conhece uma família para lá de misteriosa.

Crítica

Fale a respeito de uma masculinidade frágil! Parece ter sido essa a provocação que motivou o diretor e roteirista sul-africano John Trengove a realizar seu segundo longa-metragem, o drama Manodrome. Esta é também sua estreia em Hollywood, após ter sido escolhido como representante oficial do seu país natal no Oscar de Melhor Filme Internacional com o anterior Os Iniciados (2017) – e ficou na shortlist de 9 pré-finalistas, além de ter sido premiado nos festivais de Londres e Mumbai, entre outros. Após um começo de tamanho impacto, se fez necessário um passo ainda mais ambicioso. Para tanto, reuniu nomes de peso e uma história que conversa com dilemas contemporâneos, um tormento que tem se mostrado cada vez mais crucial numa sociedade dita civilizada e moderna: como devem agir aqueles que sempre estiveram no poder e nunca foram ensinados a abrir espaço para os outros? Seria uma simples questão de perda de privilégios, como esses insistem em afirmar, ou algo maior e mais amplo, que diz respeito à necessidade de todos terem o seu lugar ao sol? Pode um se sobrepor aos demais apenas por acreditar ser esse o seu “direito divino”? O homem branco, heterossexual e cis está no centro desse debate, e talvez poucos representem melhor esse personagem do que Jesse Eisenberg.

Indicado ao Oscar como o protagonista de A Rede Social (2010), Eisenberg tem se especializado ao longo de sua carreira em tipos frágeis, inseguros, que ou assumem uma postura submissa, ou acabam por se revoltar contra as injustiças que se vê vítima através de golpes sorrateiros e dissimulados. Em sua filmografia figuras assim se repetem, como visto em O Duplo (2013), A Arte da Autodefesa (2019) ou até em sua entrada no Universo Estendido DC como Lex Luthor a partir de Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016). Pois esta mesma personalidade ganha mais uma vez vida como Ralphie, um motorista de uber que passa seus dias rodando por uma Nova York que pensa estar cada vez mais decadente e sem espaço para pessoas, digamos, “decentes” como ele (ou é, ao menos, o modo como vê a situação ao seu redor). Como essa rápida descrição antecipa, o espírito parece ser o mesmo visitado há mais de quatro décadas no clássico Taxi Driver (1976). Porém, se Eisenberg não é Robert De Niro, certamente Trengove não é Martin Scorsese. Cientes dessa realidade, sabiamente tentam se afastar de comparações imediatas e possíveis, não apenas para evitar o óbvio, mas também para propor um estudo: qual seria o caminho a ser trilhado por um ser atormentado como esse nos dias de hoje?

Nós dois viemos de lugares de merda”, diz sua namorada a ele, enquanto tanto o acalma quanto o estimula a mais um dia de luta pela cidade. Ela está grávida, ainda que relutante – foi por insistência dele que decidiram manter o bebê – e em dúvida se fez ou não a coisa certa ao levar adiante essa condição. Não tanto por ter ou não espírito maternal (o que não tem), mas por saber que, sozinha, não conseguirá dar conta. Ela precisa dele. Mas por quanto tempo esse seguirá sendo o homem ao seu lado? O trabalho dela como atendente em um mercado de conveniências não é dos mais auspiciosos, mas ao menos é algo garantido e com o qual não tem muito com o que se preocupar. Já ele está nas ruas diariamente, sujeito a tudo e todos. A qualquer momento, sua vida pode mudar. Ao invés de se preocupar, porém, com um assaltante ou alguém que possa lhe causar um desfecho ainda mais violento, o que parece lhe incomodar é o seio exposto de uma mãe amamentando ou demonstrações de afeto entre um casal gay. Os passageiros, portanto, mudaram. Mas aquele sentado no volante permaneceu o mesmo.

O maior problema da humanidade talvez seja justamente a falta do que fazer. Com tanto tempo livre em mãos, Ralphie tem muito o que observar e pouco o que fazer. Nos poucos minutos ou horas que tem para si, os gasta na academia, malhando músculos e acreditando que, se melhorar o exterior, estará também no caminho de um todo mais avançado. Quando é apresentado a uma irmandade de homens como ele, que em um ponto ou outro se viram desprovidos de propósito, descobre que só conseguiram se encontrar uns nos outros. O ‘pai’ Dan (Adrien Brody, se valendo em cena de uma força capaz de capturar as atenções) é o líder de uma quase seita, com palavras de ordem e gritos de união, na linha de “não dependemos de ninguém, temos que ser a melhor versão de nós mesmos e não há quem possa nos colocar para baixo”. É como se essas fossem pessoas tão fracas e passíveis de se verem influenciadas por outros que o único meio de se manterem protegidas é através do isolamento. Abandonam os que deles sempre estiveram próximos, dando início a uma existência que fica mais na teoria do que na prática em si. Afinal, uma vez que passam a gastar seus dias uns com os outros, o que, enfim, irão fazer? Ninguém vai a lugar nenhum apenas se esforçando em convencer a si mesmo e aos que estão por perto do quão incrível você é. Afinal, se essa fosse uma verdade, não seria necessário ouvir de outros.

Manodrome reúne elementos pertinentes, e até que o seu cenário esteja armado, faz dessa jornada uma experiência, se não estimulante, ao menos curiosa. No entanto, assim que o todo se mostra por completo, a impressão é a de não saber exatamente o que fazer dali em diante. Se por um lado traços dessa personalidade são desenhados com tintas tão profundas que apagam qualquer possibilidade de mistério a respeito (como a homossexualidade reprimida que resulta em violência), outros aspectos surgem através de indicações, sem nunca merecer o mergulho que talvez tais debates pudessem provocar. Eisenberg faz o que dele se espera, e se Ralphie não lhe soa estranho, ao menos é certo que exigiu dele além daquilo com o qual muitas vezes se mostrou acostumado. Assim, ele e Trengove se confirmam sólidos nessa discussão, atendendo a um chamado cada vez mais urgente, mas também sem esperança de que algo de diferente possa, enfim, ser feito para mudar um final que se anuncia trágico desde o primeiro instante. E se tanto o incômodo inicial quanto o destino ao qual se dirige parecem familiares, era de se esperar ao menos que o caminho entre um e outro conseguisse levantar um ou outro ponto de vista original. Uma vontade que fica mais na intenção do que no factual.

Filme visto no 73º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2023

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deRobledo Milani (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *