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Crítica


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Sinopse

Martín Weber fotografou o território latino-americano intensamente entre 1992 e 2008, pedindo às pessoas que escrevessem seus sonhos numa lousa escura. Décadas depois, ele volta a procurar as pessoas fotografadas, para descobrir se algum daqueles desejos se tornou realidade.

Crítica

“Você é feliz?”. Em 1961, Jean Rouch e o teórico Edgar Morin realizaram um documentário centrado neste questionamento, e nas respostas obtidas dos passantes nas ruas. A pergunta de Crônica de um Verão deixava os interlocutores perplexos, indignados e mesmo ofendidos. Como alguém ousa indagar algo ao mesmo tempo tão íntimo e tão banal, tão simples e tão difícil de responder? Décadas mais tarde, o diretor e fotógrafo Martín Weber viajou por uma dezena de países latino-americanos fazendo uma pergunta um pouco diferente, porém associada à temática da felicidade. “O que você quer?”. As pessoas poderiam escrever qualquer coisa que quisessem numa pequena lousa: dinheiro, amor, saúde, uma casa própria, o fim da desigualdade, o término de alguma guerra. Depois, foram fotografadas com suas lousas, transformando as imagens não apenas no retrato das classes desprivilegiadas dos anos 1990 no sul do continente, mas também uma espécie de imagem dos sonhos. A cada fotografia, o espectador é convidado a unir as palavras aos rostos, imaginando assim a história por trás daquele momento. Mais de uma década depois, Weber retorna às cidades visitadas, procurando pelas pessoas fotografadas no passado. A indagação agora é outra: será que eles realizaram seus sonhos?

Em Mapa de Sonhos Latino-Americanos (2020), a viagem constitui uma finalidade em si mesma. Muitas vezes o cineasta não reencontra os personagens anônimos de tempos atrás, conversando então com os familiares, vizinhos, ou apenas as pessoas que passam pelo mesmo lugar. Os sonhos seriam os mesmos, uma geração mais tarde? Ainda se sonha em 2020 da mesma maneira que se sonhava em 1990? O documentário efetua uma triangulação constante entre passado, presente e futuro, tanto reais quanto imaginários. Para unir tantos países – México, Guatemala, Colômbia, Brasil, Paraguai, Nicarágua etc. -, baseia-se num passado comum de opressão e ditadura. De fato, todos esses países passaram por sua própria forma de regime ditatorial, muitos deles financiados pelos mesmos Estados Unidos da América, em alguns casos durando décadas, como os vinte e um anos de ditadura no Brasil. Todas as pessoas entrevistadas possuem marcas no passado, o que vale tanto para as cicatrizes físicas do morador de rua que escreve em sua lousa “Gostaria de morrer”, quanto para os idosos de classe média no Rio de Janeiro, presos e torturados pelos militares na década de 1960. Com o que sonham aqueles que perderam os filhos, o marido, a casa?

Weber substitui as lágrimas pela poesia. Para equilibrar o conteúdo pesado de cada conversa, a montagem oferece, após os encontros brutais com vítimas de ditaduras, imagens da população caminhando em silêncio nas ruas, ou então dançando, lavando a roupa no rio, executando rituais próprios. Esta pausa serve como convite à reflexão, além de demonstrar que o diretor está preocupado em efetuar boas perguntas ao invés de obter boas respostas. Muitas vezes, um sorriso ou uma surpresa diante das fotografias transmite carrega um significado profundo sobre a passagem do tempo e sobre os anseios de antigamente. O documentário está repleto destas “cenas mágicas”, aqueles momentos de perfeita espontaneidade dos entrevistados que dificilmente aconteceriam de qualquer forma condicionada ou dirigida. Quando um artista revolucionário se depara com a fotografia de uma adolescente pobre, cujo sonho é se casar com um norte-americano, ele fica indignado, ao mesmo tempo em que busca respeitar o desejo alheio. O rapaz admira a foto, boquiaberto, e depois estende a mão para devolver a imagem ao cineasta, mas então freia o gesto e retoma a fotografia, para admirar mais duas ou três vezes, incrédulo. Ele quer se desfazer da foto, mas não consegue. Quer parar de olhar, mas não se contém. O duelo de gerações, de pontos de vista, de sexo e de ideologia se condensam maravilhosamente neste instante de poucas falas.

O filme também se beneficia do fato de ter um fotógrafo still à frente da direção. Primeiro, porque Martín Weber deixa ao espectador tempo suficiente para contemplar cada fotografia, visitando os cantos e detalhes da imagem, antes de explorar seu significado e história. Ou seja, podemos atribuir nosso próprio julgamento antes que vozes alheias ressignifiquem os registros. É comum aos documentários sobre arte explorar quadros, esculturas e fotografias como dados, meramente citados pela montagem, porém o diretor possui plena consciência da necessidade de permitir ao espectador fruir desta foto enquanto tal – parada, sem som nem vozes. Segundo, porque o Weber organiza cada conversa com uma beleza plástica impressionante: as tradicionais entrevistas direto à câmera são transformadas em instantes que valem não apenas pela narrativa oral, mas pela plasticidade da imagem. As luzes, cenários e os enquadramentos são muito bem controlados, mesmo dentro de lugares aparentemente que aparentam pouca intervenção da câmera, a exemplo das casas das pessoas, das prisões e das ruas das cidades. Dentro de um presídio, uma voz em off solicita ao diretor que pare de filmar por não possuir permissão. É surpreendente a beleza que ele consegue obter a partir de situações urgentes.

Outro mérito notável de Mapa de Sonhos Latino-Americanos se encontra na abertura à escuta. Não se parte de um tema prévio para então buscar pessoas e fatos capazes de defender a tese do diretor. Pelo contrário, Weber demonstra receptividade a qualquer conto que seus entrevistados desejem compartilhar, desde os mais íntimos aos mais politizados. Da mulher que pede “carinho” em sua lousa escura, à outra que solicita a descoberta do paradeiro do filho sequestrado pela ditadura, além da punição dos responsáveis, existe uma gama impressionante de concepções sobre o sonho e sobre a oportunidade de se expressar diante de uma câmera. Afinal, filma-se pessoas sem nome, que jamais apareceriam em documentários comuns por não terem vivido histórias estampadas nos tabloides, nem corresponderem a especialistas de suas áreas. Quando ganham voz e a capacidade de registro, podendo controlar o discurso tanto quanto são controlados pelo dispositivo cinematográfico, os entrevistados se abrem com uma franqueza ímpar. Muitos deles discorrem sobre a tristeza dos familiares perdidos, da miséria, da juventude difícil. Ao perguntar o que desejam, Weber automaticamente transforma seu filme num apanhado de necessidades, e como lembra um entrevistado, “a necessidade não é um sonho, é um pesadelo”. A poesia amarga que emana de cada reencontro garante o valor deste documentário tão simples em sua estrutura quanto ambicioso em sua abertura ao mundo.

Filme visto online no 7º BIFF – Brasília International Film Festival, em abril de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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