float(14) float(4) float(3.5)

Crítica


5

Leitores


4 votos 7

Onde Assistir

Sinopse

Profissional bem-sucedida, Manuela precisa lidar com as mudanças em seu corpo ao descobrir-se grávida. Adiante, quando o bebê nasce, ela também precisa aprender a ser mãe.

Crítica

Entre as diversas representações cinematográficas da gravidez, há pouca abertura para aquelas conduzidas a término sem real interesse por parte da gestante. O cinema, afeito a casos exemplares e extremos, valoriza o ideal da maternidade romântica, ou então o dilema do aborto – ambos válidos, porém incapazes de esgotar a pluralidade do tema. Em Mar de Dentro (2020), a diretora Dainara Toffoli acompanha a trajetória de Manuela (Mônica Iozzi), publicitária respeitada que descobre uma gravidez indesejada. Entretanto, por pressão do namorado (Rafael Losso), segue com a gestação. Seria tentador encaixar a heroína em algum rótulo extremo: a mãe afetuosa, a mulher que descobre sua paixão pelo bebê durante o crescimento dele, a mãe negligente etc. Ora, ela não corresponde a nenhum desses casos. Manu encara o desafio com a mesma seriedade que enfrentaria qualquer desafio profissional. Ela se aplica, desempenhando bem as tarefas, incluindo os primeiros meses de vida do filho. No entanto, demonstra um afeto distante pela criança. Contra o pressuposto conservador de que a maternidade constituiria a finalidade de toda mulher, ou ainda um sinônimo de completude pessoal, a cineasta oferece a ideia da criação dos filhos enquanto afazer suplementar imposto ao percurso das mulheres.

Em contrapartida, a interessante premissa enfrenta algumas dificuldades de realização. A principal delas diz respeito ao trabalho de gradação e elipses. Em se tratando de um tema intimamente ligado à passagem do tempo (afinal, a chegada do bebê está cada vez mais próxima), a montagem apresenta dificuldade em operar mudanças sutis ou diferentes níveis de angústia na vida da protagonista. Transita-se entre blocos estanques: passa-se do início da gestação às vésperas do parto; do intenso trabalho na agência à vida solitária em casa; da onipresença da amiga Teresa (Gilda Nomacce) ao desaparecimento da mesma. Deste modo, as sutilezas se perdem: vemos Manu ora dedicada por completo ao bebê, passando dia a noite com o filho, ora num momento seguinte em que não passa tempo algum com a criança. Por mais importante que seja destacar ambas as situações, seria ainda mais pertinente investigar os elementos que conduzem de um ao outro. A heroína sente falta do bebê no retorno à agência? Sente falta das campanhas publicitárias quando está com o bebê? Ela não possui nenhum familiar para além da presença agressiva dos sogros? Nota-se a dificuldade do roteiro em fazer os núcleos narrativos coabitarem: a partir do instante em que um personagem ou conflito invade a narrativa, o anterior desaparece.

Além disso, o drama efetua a escolha arriscada de se concentrar inteiramente no corpo e no rosto de sua protagonista. Mônica Iozzi está presente durante a quase integralidade das cenas, com a câmera próxima de sua barriga ao longo da gravidez, de seu rosto quanto chora, de suas pernas quando se masturba. Trata-se de um filme de personagens no sentido clássico do termo, seguindo o cotidiano de Manu sem conduzir a protagonista a algum término específico. A narrativa poderia se encerrar antes ou depois do ponto escolhido, a gosto do roteiro. A atriz certamente se dedica bastante ao projeto e possui bons momentos, a exemplo da descoberta do teste positivo de gravidez numa cena sem palavras. No entanto, de modo geral, não consegue imprimir a variação emocional necessária para uma personagem tão exigente. A confissão de um trauma de infância é enunciada sem qualquer peso nas palavras ou no olhar, e a impressão do cansaço acumulado durante os primeiros meses do nascimento mereceria maior precisão. Os instantes de profundo desespero, relacionados ao luto e ao trauma, poderiam ser construídos com muito mais nuances.

No entanto, o efeito da atuação se acentua pelo caráter engessado da própria mise en scène. Uma cena fundamental envolvendo o namorado é conduzida com uma rapidez e brutalidade incompreensíveis pela edição, o que de certo modo banaliza a importância daquele momento e prejudica a composição de Iozzi. Babás, cuidadoras e sogros invadem o apartamento da protagonista como furacões, da mesma maneira que Manu adentra escritórios alheios ou critica o trabalho dos colegas de profissão. Na ânsia de criticar a maneira como mães são vistas no mercado de trabalho, ou a interferência moralista dos familiares na criação do bebê, o filme reforça esses traços ao limite do antagonismo (é difícil ter qualquer empatia pelos personagens interpretados por Zécarlos Machado e Magali Biff). Há pouca ternura no projeto, seja aquela da personagem com o bebê, dela com os demais adultos, ou mesmo do olhar da câmera com a protagonista. A direção de fotografia o rosto perto demais, de maneira invasiva, impedindo nuances no doloroso processo de Manu. A protagonista está frequentemente no centro da imagem, de maneira pouco expressiva. O choro descontrolado no chuveiro, por exemplo, ganharia em delicadeza caso na câmera não se aproximasse tanto. Em paralelo, as panorâmicas com lentes grandes-angulares dentro do apartamento provocam um efeito de estranheza. Paira a sensação constante de que outro conjunto de objetivas por parte da direção de fotografia produziria melhor resultado.

Apesar do título, Mar de Dentro resulta numa obra de pouca poesia. O mar é utilizado discretamente dentro da trama, assim como a simbologia dos aquários. Não há outras metáforas para a dor, a angústia, o sofrimento ou as felicidades da publicitária. Respeita-se uma lógica cartesiana de antes e depois, causa e consequência, baseada essencialmente nas ações e grandes pontos de virada da protagonista. Com o que sonha esta mulher? O que ocorre com sua libido pós-parto? Que memórias possui de sua própria infância? Como interpreta a maternidade das mulheres ao redor? A que filmes assiste, o que gosta de comer, que elementos lhe chamam a atenção? Seria importante buscar alguma vida para além do conflito central, tornando a personagem multifacetada e menos condicionada à presença do bebê. Descrições paralelas serviriam para fomentar o comportamento intempestivo de Manu a facilitar a identificação com a personagem. Mesmo assim, para um primeiro longa-metragem, o drama revela uma aposta corajosa em temas psicologicamente densos, ao invés de uma narrativa convencional. O projeto serve para consolidar a presença de novas autoras femininas (Toffoli e a co-roteirista Elaine Ferreira) se amparando de temas marcados por preconceitos e idealizações.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *