Mar Inquieto
Crítica
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Sinopse
Após uma juventude conturbada pelo uso de drogas, Anita se isola numa pequena praia. Num ambiente repleto de lendas de demônios e óvnis, a maior ameaça para Anita parece estar em sua casa, na forma de Vitorino, seu marido. Manifestações de seu passado se mostram mais perigosas do que qualquer demônio.
Crítica
Fernando Mantelli tem uma carreira extensa como curta-metragista, com trabalhos – em sua maioria – voltados para o fantástico. Por causa disso, não é surpresa que seu primeiro longa-metragem passeie pelo gênero, embora não finque pé nele. Mar Inquieto é uma mistura de sci-fi, thriller policial, suspense e pitadas de comédia. Apesar do filme não ter uma coesão neste sentido, isso acaba sendo um predicado, visto que os caminhos por quais a história se embrenha são insondáveis. Com algumas boas surpresas e atuações acima da média, o filme se mostra um esforço interessante para um cineasta estreante em longas.
Na trama, assinada por Mantelli ao lado de Tiago Rezende, conhecemos Anita (Rita Guedes), uma ex-junkie que vive um relacionamento conturbado com o explosivo Vitorino (Daniel Bastreghi). Envolvido com negócios escusos, aquele homem sonha ter um filho com a esposa, mas a cada nova tentativa, uma nova decepção. Depois de uma discussão acalorada, Anita toma uma atitude intempestiva e irreversível, precisando da ajuda de uma vizinha de confiança, Paula (Áurea Baptista), para ajeitar a bagunça. Se não bastasse essa situação, ela desconfia que finalmente tenha ficado grávida, enquanto Hugo (Miguel Lunardi), o perigoso comparsa do seu marido, começa a cercá-la. Seria hora de ela dar ouvidos às vozes que ela tanto ouve vindas do mar?
Na tentativa de não estragar surpresas do roteiro, é obrigatório que algumas partes da sinopse sejam um tanto vagas. De qualquer forma, o desenrolar dos acontecimentos acaba surpreendendo, principalmente pela inclusão certeira do humor negro, advindo da participação roubadora de cena de Áurea Baptista. Essas pitadas galhofeiras na trama revelam um senso de autorreferência muito curioso, quase como se os personagens entendessem que estão em uma história fictícia. Talvez por isso o segundo ato do filme cresça tanto em relação ao primeiro.
Além de protagonista, Rita Guedes assina a produção do longa e entrega uma atuação segura, vivendo uma mulher forte e destemida. Isso é verdadeiro principalmente quando a trama se concentra no tempo presente, em que ela precisa se virar para escapar dos olhos de rapina de Hugo e seu capanga (Marcos Contreras). Já quando a trama mostra seu passado junkie, Guedes não convence da mesma forma. Sua dobradinha com Áurea Baptista são os melhores momentos do filme, principalmente por vermos duas mulheres em uma relação que lembra muito Pedro Almodóvar. É clara a referência à Volver (2006), um dos mais elogiados trabalhos do cineasta espanhol. Também sobram referências ao cinema de Quentin Tarantino, principalmente pela mistura de referências que Mantelli e sua equipe trazem ao filme.
Produção esmerada e utilizando muito bem o cenário do litoral gaúcho, Mar Inquieto apresenta uma rara e interessante cena em alto mar, com um pequeno barco e três personagens a bordo. Salutar ver como um orçamento limitado não necessariamente restringe a criatividade ou a vontade de se fazer cinema.
Uma pena que elementos que poderiam ser desenvolvidos são jogados e esquecidos pelo roteiro. Os pontos sobrenaturais são colocados a esmo e descartados tão logo são introduzidos. As lendas e crendices do local, que poderiam ser aproveitadas, são apenas citadas em cenas que parecem soltas. O próprio pretenso envolvimento de Anita com as vozes do mar é mal explorado – embora o desenho sonoro destes momentos tenha inegável qualidade. A cena da carne crua serve mais como autorreferência a um curta anterior do cineasta do que um catalisador plausível para a grande virada da história, visto que nunca mais retorna à trama aquele gosto culinário curioso.
Mesmo com alguns problemas, Mar Inquieto acerta muito mais do que erra o alvo. Temos um esmerado trabalho sonoro, com a trilha e os efeitos trabalhando nos momentos certos – por vezes incomodando propositalmente o espectador. É ótimo conferir um longa-metragem nacional que se preocupa em contar a história não apenas com imagens, mas com a ajuda de sons de forma pouco óbvia. Não raro nos sentimentos desconfortáveis assistindo ao longa, principalmente por causa da camada sonora que foi criada para entregar essa atmosfera. A narrativa não-linear também funciona bem, revelando informações sobre os personagens ou sobre a trama que em um formato convencional perderiam o impacto. E, claro, é salutar que acompanhemos uma história encabeçada por uma personagem feminina forte. Rita Guedes interpreta uma mulher corajosa, mas incompleta. Alguém que passou pelo diabo no passado e só quer começar um capítulo novo em sua vida. Para isso, no entanto, ela terá de sacrificar pontos que pareciam importantes em sua trajetória, algo que se revela o verdadeiro motor do filme.
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