Crítica
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Crítica
Há cineastas que claramente não confiam na inteligência do espectador, o que resulta num paternalismo didático e pobre. Em alguns casos, temos filmes (e séries) que parecem meras explicações ilustradas por imagens de apoio, nos quais certos personagens mastigam tudo às outras figuras em cena e a nós do lado de cá. De vez em quando, as muletas-sabichões elucidam com detalhes até sentimentos e hesitações que poderiam perfeitamente ser comunicados de outra forma. Por exemplo? Com o auxílio da expressão dos atores. Felizmente, a estreia da atriz Jasmine Trinca na direção de longas-metragens mostra o exato oposto: uma cineasta que aposta na perspicácia da plateia para ler gestos, indecisões e olhares, bem como as simbologias e os tons emanados da construção estética. A protagonista de Marcel! é uma menina (Maayane Conti) que mora com dois idosos. E ela exercita saxofone na casa da artista cujo comportamento levemente delirante a situa no limiar entre a poesia e a fragilidade psicológica. Aos poucos, sem que apareça alguém “entregando” os papeis de todos no entorno da protagonista, temos o panorama esclarecido. Nona (Giovanna Ralli) é identificada como a avó pela incessante menção ao homem que morreu (filho dela, logo o pai da jovem); Nono (Umberto Orsini), que joga cartas para passar tempo, é o marido da Nona, então fica fácil compreender sua função nesse cenário.
Ainda sobre essa revelação gradativa dos papeis de quem está ao redor da menina, a mulher-atriz (Alba Rohrwacher) é a mãe, a vizinha do outro lado da rua que abdicou de cuidar da filha. Para se ter uma ideia sobre essa elaboração sugestiva e sem atropelos, a palavra “mãe” é pronunciada pela primeira vez no 30º minuto do filme. Jasmine Trinca não parece preocupada com a revelação de porquês e senões, sobretudo a julgar pela falta de questionamentos direto – por que a Mãe deixou a filha com os avós? O que a menina pensa verdadeiramente da distância aproximada? Como os idosos enxergam a ex-nora? Quase todas essas respostas aparecerão nas entrelinhas, não de modo frontal, mas como consequências de gestos e aventuras. Certos enigmas permanecerão sem soluções e está tudo bem, pois isso não compromete a experiência, pelo contrário, a tornando mais relativa do que absoluta. Marcel! tem um acentuado tom de fábula, vide a estética marcada por cores vivas e os figurinos para-realistas – inspirados numa época, mas estilizados. E esse lirismo também está impregnado na elaboração da protagonista como uma heroína romântica em busca de relances de felicidade. Maayane Conti concebe a personagem como uma menina deslocada em busca de migalhas de afeto materno, tentando encontrar seu lugar num mundo de fantasmas e ausências. E ela o faz com notável introspecção.
Marcel! é um ajuste de contas quase comedido, no qual as batalhas se dão mais no nível íntimo do que no diálogo entre os divergentes. A menina evidentemente sente inveja do carinho que a sua mãe concede efusivamente ao cachorro Marcel. Demonstrando os traços imprevisíveis e potencialmente destrutivos da falta de amor, Jasmine Trinca faz a sua protagonista cometer um crime que certamente vai deixar parte da plateia revoltada. Mas, o desespero contido no olhar da pequena depois que ela passa dos limites é um convite à empatia. Quanta dor a Menina precisou suportar até tomar a atitude para organizar as coisas à sua maneira, de modo menos passivo? Fosse num filme mais convencional, esse segredo seria encarado como uma bomba relógio prestes a explodir o idílio torto de mãe e filha numa viagem repentina. Porém, reiterando essa vontade de colocar o espectador para ponderar os detalhes da trama, a fim de decodificar atitudes e silenciamentos, a cineasta evita tomar esse caminho muito conhecido – tanto que a revelação da verdade causa dor, como não poderia deixar de ser, mas não é encarada necessariamente como uma tempestade violenta que antecede a bonança das promessas de felicidade. A trama vai iluminando o imediato entorno da Menina para percebermos que todos por ali sentem alguma dor paralisante: da Mãe refugiada na arte aos avós escondidos na rotina.
A sensação de isolamento manifestada constantemente pela Menina é reiterada na dinâmica do interesse amoro por uma jovem ligeiramente mais velha que brinca com as amigas nas cercanias. A personagem de Maayane Conti chega a dar um passo corajoso em direção a uma tentativa de aproximação, mas tem a sua miséria ampliada ao flagrar o seu alvo sentimental ridicularizando o presente recebido. Marcel! pode ser definido como um drama gracioso que flerta com os preceitos da tragicomédia. Nele, adultos e crianças são dilacerados pelo desamparo. Ao ser confrontada pela imensa saudade que a mãe sente do cachorro, a Menina vê sua devoção canina sendo transformada em rancor. Seria essa mudança de estatuto uma forma pouco ortodoxa de crescimento, uma vez que ela deixa de romantizar o abandono da mãe e passa a focar na própria sensação de orfandade? No entanto, isso não quer dizer que Jasmine Trinca esteja disposta a sacrificar a imagem da Mãe em prol do amadurecimento da filha. Talvez apenas quando a Menina compreender os motivos da paixão por Marcel é que estará pronta para maturar emocional e psicologicamente. Em sentido mais estrito, a Menina precisa enxergar a Mãe como uma mulher que carrega dores incomensuráveis para compreender que a distância não é opção irresponsável ou ainda uma tola excentricidade. De modo pouco gregário, é uma proteção contra essa dor excruciante. Em suma, uma estreia bem promissora de Jasmine Trinca.
Filme visto durante a 10ª 8 ½ Festa do Cinemas Italiano, em junho de 2023
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