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Sinopse

Maria leva seu irmão, João, ao bosque em busca de comida de trabalho. Lá, nesse espaço misterioso, encontram Holda, uma senhora não menos enigmática. Eles descobrem que nem todos os contos de fadas têm um final feliz.

Crítica

Comumente, a muito disseminada história na qual este filme se baseia (casa de doces, bruxas engordando crianças, lembram?), oriunda da tradição oral, mas popularizada pela célebre versão dos irmãos Grimm – conforme consta, amenizada para caber no gosto da burguesia do século 19, mas originalmente uma narrativa dura sobre as agruras da Idade Média –, traz aqui, no título, o menino depois da irmã. A inversão não é um mero capricho, ou algo feito simplesmente para soar alinhado com a contemporaneidade mais atenta ao feminino. Maria e João: O Conto das Bruxas, além de ser protagonizado pela menina, carrega nas tintas fabulares para desenhar uma espécie de disputa ontológica, porém, delineando paulatinamente o reverso do socialmente cristalizado. Desde o princípio sobressaem as várias “migalhas de pão” deixadas ao longo da trama pelo cineasta Oz Perkins, pistas sintomáticas, tais como a forma absolutamente corajosa com a qual Maria (Sophia Lillis) lida com o assédio de um possível empregador. Ela não cede, mas acaba sendo punida.

Essa relação entre a resistência da jovem e o castigo aponta, sutilmente, a toda uma coletividade edificada sobre as bases do machismo, da prevalência dos desígnios do homem e da consequente subserviência da mulher. Adiante, num jogo de xadrez, o diálogo é igualmente carregado de entrelinhas que dão conta dessa tensão, com a personagem falando da necessidade de subjugar o rei e deixar a rainha protegida. Todavia, Maria e João: O Conto das Bruxas não vale apenas o quanto pesa esse subtexto bem trabalhado, mas, em semelhante medida, por seu arcabouço estético decalcado do imaginário dos contos de fadas. O realizador não se furta de criar florestas expressivamente aterrorizantes, de abusar de feixes de luz cortando a escuridão com a valorização das camadas de neblina. Perkins, mais ou menos como fizera Neil Jordan em A Companhia dos Lobos (1984), almeja a estilização, enche o filme de uma iconografia muito própria, mas também se vale de símbolos conhecidíssimos, por exemplo, o pontudo chapéu de bruxa, disposto para gerar familiaridade.

Maria e João: O Conto das Bruxas oferece um terror atmosférico, filtrando tudo por um prisma propositalmente irrealista, fabular, ao qual é importante ressaltar a dominante psicológica de cada cena e sublinhar o efeito do clima na experiência dos personagens. Ao mesmo tempo, adentra orgulhosamente, à sua maneira, na seara da fantasia. Nesse conjunto harmonioso, são fraquezas os jump scares desnecessários, que entram na equação como execução burocrática do que se esperaria de um filme de horror, e a debilidade de determinadas passagens sustentadas demasiadamente na mera exposição. Em dado momento, a bruxa se dignifica a esclarecer as diferenças entre lenda e realidade, num procedimento semelhante ao “monólogo do vilão”, aquele expediente tão presente nos filmes de super-heróis em que o malvado explica o plano antes de consumar algo tétrico. De modo parecido, algumas figuras passageiras pouco acrescentam, a não ser como simples indícios. São pontuais senões, contudo, que não eclipsam de todo a força do longa-metragem.

Oz Perkins – filho de Anthony Perkins, o Norman Bates de Psicose (1960) – explora com habilidade um repertório bastante singular de códigos e minúcias que tratam de adensar, principalmente, a distensão entre homens e mulheres. A bruxa vestida de negro “dentro” do triângulo é uma presença e tanto, potente imageticamente. Aliás, essa forma geométrica é recorrente, aparecendo na abertura que serve ao olho bisbilhoteiro e na choupana da anfitriã de modos suspeitos. Aliás, a casa é enquadrada frequentemente junto às fases da lua a fim de demarcar a passagem do tempo e criar uma bela associação poética. Mas, equivalentemente importante é a compreensão da conexão de Maria com a natureza e seu elo com Holda (Alice Krige, excelente). Elas são irmanadas por um sagrado de contornos profanos. Enquanto a primogênita se comunica com árvores, o caçula, João (Samuel Leakey), é talhado para machada-las, ou seja, cortar determinados “maus”. A metáfora dos lugares distintos ocupados por homens e mulheres é forte e reverbera.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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