Crítica
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Sinopse
Carlos Marighella, ex-deputado, poeta e guerrilheiro brasileiro, foi assassinado pela Ditadura Civil-Militar em 1969. Quais foram os passos do homem que criou o Manual do Guerrilheiro Urbano, um dos principais pensadores da época?
Crítica
Numa das cenas mais simbólicas de Marighella, o revolucionário Carlos Marighella (Seu Jorge, num trabalho intenso e furioso) se refugia no cinema para escapar de seus algozes da Ditadura Civil-Militar. Na tela está sendo exibido um filme de Amácio Mazzaropi, um dos grandes artistas brasileiros em termos de comunicação genuína com o público em massa. Não é dito, mas provavelmente os demais presentes na sessão queriam momentos de escapismo, talvez um par de horas longe da convulsão social do Brasil tomado de assalto por militares que nos desgovernaram ao longo de 21 anos. O cineasta iniciante Wagner Moura prepara o terreno com a habilidade de um veterano, auxiliado no resultado pela montagem de Lucas Gonzaga que trata de imprimir uma carga de tensão permanente. Os capachos da repressão vêm chegando, as luzes das lanternas precipitam a agitação de homens, mulheres e crianças. Tudo culmina com o deputado negro covardemente baleado. O protagonista se esvaindo em sangue luta como um animal bravio que não está mais preocupado com a sua vida do que com o país no qual acredita. Diante de tudo isso, é difícil conter as lágrimas. Tratado pelos conservadores como um subversivo perigoso, celebrado por progressistas como um exemplo da coragem necessária para resistir em tempos nefastos, Marighella é visto neste aguardado longa-metragem enquanto ícone e ser humano. Às vezes, altivo como cabe aos mitos, Noutras, vulnerável como um alguém comum.
Sem receio de incorrer num reducionismo, podemos dizer que Marighella é essencialmente um filme de ação. Do ponto de vista estritamente cinematográfico, isso está posto pelo comportamento nervoso da câmera na mão e pela forma como a montagem encadeia acenos afetivos e/ou políticos. Já partindo a uma leitura mais ideológica, Wagner Moura elogia a ação (do verbo agir) como um gesto de resistência. Para isso, enfatiza os ímpetos dos personagens que gravitam em torno de Marighella – chamado carinhosa e respeitosamente pelos companheiros de Preto. Wagner sublinha a coragem do pai de família que coloca em risco os seus pelo patriotismo certamente prevalente à covardia dos milicos; lança luz sobre a bravura da jovem universitária que igualmente traz o perigo para a própria casa, não por irresponsabilidade, mas em virtude da urgência; se achega do sujeito mais radical que leva missões às últimas consequências; de certa forma, reverencia a firmeza da revolucionária que diz ao protagonista “estou contigo para o que der e vier”. E Wagner também se demora nas complexidades, nas nuances, como a que atravessa as participações de Herson Capri na pele do jornalista e a do pastor Henrique Vieira encarnando o religioso que adere à resistência e alude à negritude de Jesus Cristo. E é uma sacada ótima os revolucionários utilizarem como apelidos os nomes dos seus respectivos intérpretes.
Há outro aspecto interessante em Marighella e ele diz respeito a uma certa tendência recente do cinema brasileiro. Pelo menos de uns 20 anos para cá, surgiram vários filmes propostos a revisar os anos de chumbo a partir de percursos familiares. Em Diário de uma Busca e Fico Te Devendo uma Carta Sobre o Brasil (2020) – para citar apenas dois documentários (2010) de muitos exemplares semelhantes em intenção –, temos cineastas que investigam seus pais à luz das participações deles em levantes contra a Ditadura imposta em 1964. Neste longa-metragem muito bem conduzido por Wagner Moura , a questão geracional é igualmente essencial para sugerir heranças e legados. O próprio Marighella se comunica post mortem com o filho, tramando profeticamente uma narrativa de intimidades que serve para envelopar o mito numa embalagem humana, demasiadamente humana. Mas, essa interação com o menino não serve somente de acesso à faceta privada do revolucionário, pois também alude ao que motiva a luta de Marighella. Na primeira cena do filme, vemos o líder ensinando calmamente o filho a nadar, segurando-o para que as ondas não lhe pareçam perigosas. No final, o menino encara as oscilações das águas com autonomia. É uma metáfora visual muito bonita essa a do ensinar a nadar para enfrentar as marés mais desafiadoras. E existem outros elos essenciais entre pais e filhos. Há um par cenas perdidas – vide o menino retrucando o professor –, mas estas são minoria.
Jorge (Jorge Paz) doutrina seus meninos precocemente a sobreviver inventando novas identidades. Adiante, noutra cena de marejar os olhos, um companheiro garante que essas crianças não fiquem órfãs. No breve socorro ao colega baleado, Bella (Bella Camero) tem um diálogo intenso e repleto de significações com a mãe interpretada intensamente por Carla Ribas. Novamente, encontros geracionais vitais. Marighella abre estratégicos espaços à identificação das divergências entre os revolucionários tratados pela imprensa conivente como bárbaros terroristas. Uns acreditam na luta armada, outros acham esse caminho próximo demais do ímpeto adversário. Existe o espaço às controvérsias, como o assassinato do norte-americano diante do filho (outra dinâmica geracional). Wagner Moura cobre uma vasta gama de personagens e situações, demarcando bem as suas opiniões sobre tudo aquilo, porém sem descuidar da complexidade de um momento histórico que não pode ser reduzido a enunciados. A inexperiência atrás das câmeras talvez explique as breves pesadas de mão em instantes excessivamente declamatórios e uma intensidade insuficiente em algumas passagens. A despeito disso, fato é que o ator/diretor realizou uma obra de força dramática e política notável, um thriller no qual o inimigo (EUA e o delegado vil de Bruno Gagliasso) são lidos conscientemente como caricaturas quase grosseiras. O mal é mesmo grosseirão e desprovido de matizes, haja visto o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.
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