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Sinopse

Mario de Andrade: O Turista Aprendiz mostra a viagem do modernista autor de Macunaíma pelo Rio Amazonas em 1927. Nessa jornada repleta de descobertas pelo Brasil profundo, um dos protagonistas da Semana de Arte Moderna de 1922 é transformado. Dirigido por Murilo Salles.

Crítica

Há várias formas de se contar uma história. O limite é o da imaginação humana, até onde ela conseguir alcançar. Então, podemos considerar o infinito como a fronteira final. Do alto de seus 74 anos de idade, o experiente cineasta Murilo Salles poderia ter encarado a viagem de Mario de Andrade à Amazônia nos anos 1920 de maneira realista, fazendo uma reconstituição clássica por meio do cinema e, quem sabe, investigando de modo direto as experiências anteriores à publicação de Macunaíma, uma das obras-primas da nossa literatura. O senso comum espera certa prudência de um realizador experimentado, quase como se o risco valesse à pena ser corrido apenas quando se é mais jovem. Felizmente, temos o quase centenário Ruy Guerra e o praticamente nonagenário Francis Ford Coppola, para ficar apenas em dois exemplos, ainda pesquisando o cinema como uma caixinha maravilhosa de novidades e possibilidades ilimitadas. Murilo pede assento nessa barca com Mario de Andrade: O Turista Aprendiz, um filme que nega completamente as abordagens convencionais ao misturar projeções, telas verdes, colagens e uma série de outros procedimentos cinematográficos que, antes de qualquer coisa, se reportam ao modernismo do qual seu protagonista foi um dos principais expoentes. E esse é o primeiro acerto da representação lírica e delirante: se associar formalmente ao gênio Mario de Andrade.

Mário de Andrade

Mario de Andrade: O Turista Aprendiz mistura os relatos de O Turista Aprendiz, livro publicado nos anos 1970 (depois da morte do autor, que aconteceu em 1945), que trata das descobertas do intelectual sudestino desse Brasil profundo às margens do Amazonas. Mario é interpretado por Rodrigo Mercadante nessa trama que retrata o assombro do autor como se fosse a passagem necessária por um rito de iniciação. Trata-se do homem experimentando o desconhecido/exótico e sendo remoldado por ele. Murilo Salles não está em busca de uma visão realista da viagem nesse road movie porque dela também quer tirar o seu simbolismo, a sua carga poética e fundamentalmente transformadora. Para isso, o veterano realizador cria uma tensão entre a realidade e a imaginação por meio da representação repleta de alegorias formais, a começar pela utilização de cenários projetados em estúdio. Mario e os demais personagens são colocados contra planos de fundo anteriormente filmados, o que cria uma camada de artificialidade. Murilo escancara o fato de que as pessoas não estão naqueles lugares idílicos projetados ao fundo, pelo contrário, fazendo questão de acentuar as diferenças de textura e iluminação para reproduzir códigos modernistas. Assim, se aproxima formalmente do cinebiografado, menos interessado nos fatos, mais motivado a extrair uma terceira via desse tensionamento entre real e imaginado.

A quantas cinebiografias caretas você assistiu de personagens libertários? Murilo Salles parte da ideia (sempre muito bem-vinda) de que antes de se ater aos fatos e criar uma narrativa coerente, é preciso se apropriar e mimetizar do estilo do protagonista. Desse modo, Mario de Andrade: O Turista Aprendiz é muito bem-sucedido, pois carrega consigo alguns dos principais pilares do modernismo. Sua linguagem é impregnada de um desejo de experimentação, de ruptura com os modelos mais clássicos da narrativa cinematográfica; há a utilização da oralidade e a tentativa de explorar as culturas brasileiras em prol de uma estética própria; usufrui-se de uma liberdade formal que certamente deve soar estranha (mas provocativa) às plateias conservadoras; e há a assimilação bem-humorada (isso é vital) de elementos das vanguardas europeias, devidamente canibalizados na tentativa de encontrar um meio de expressão próprio. Murilo não dá aos assuntos ou aos subtextos mais importância do que eles teriam em outro contexto de produção, pois faz deles sintomas da abordagem corajosa, às vezes repetitiva, mas que ainda deve ser festejada pela natureza incomum. Nos tempos em que vivemos, nos quais o consumo de massa tende a formatar narrativas para as tornar palatáveis, é louvável essa disposição de experimentar em prol da novidade, não da criação do absolutamente novo, mas de uma pulsação diferente.

Mario de Andrade:

Definitivamente, Mario de Andrade: O Turista Aprendiz não é uma cinebiografia convencional, a começar pelo recorte assumidamente restrito e impreciso. Não vemos Mario de Andrade da infância à morte. Da sua vida temos apenas um trecho específico: a jornada de descoberta pelas profundezas de um Brasil que muitas vezes acredita na lorota do modelo de “civilidade europeia” como objetivo a ser perseguido com unhas e dentes. Rodrigo Mercadante não interpreta Mario de Andrade como se desejasse extrair as complexidades humanas de um mito. Em acordo com a linguagem do filme, o ator dá vida a um corpo lírico em transformação diante de fragmentos pouco visíveis de uma nação que, por sua vez, segue em busca de identidade própria. Mario negocia com o amor e o desejo, testemunha o comportamento tendencioso e agressivo dos europeus e o acolhimento dos nativos do país não “descoberto” – pois aqui havia gente e cultura antes da chegada dos portugueses emissários de um eurocentrismo vendido como ideal de vida. Murilo Salles nos propõe uma viagem sensorial e calma na companhia de um homem notável que felizmente ousou escrever sobre um Brasil que nem mesmo os brasileiros reconheceriam na sua busca por imitar os estrangeiros. Pena que a metalinguagem é utilizada em apenas um momento, pois ela é mais uma atitude modernista que faz bem a esse filme sobre o poeta Mario.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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