Crítica
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Sinopse
Mesmo depois que um candidato da extrema-direita se elege presidente do Brasil, os Martins mantém suas naturezas sonhadora e otimista. Família negra, os Martins sentem uma nova tensão quando baixa a poeira.
Crítica
Deivinho tem um sonho. Ele quer ser astronauta. Ou melhor: astrofísico. Ele descobriu um profissional da área na internet, e após assistir a diversos de seus vídeos no youtube, ficou sabendo da vinda dele ao Brasil para uma palestra em São Paulo. O que o garoto, não mais do que um adolescente, mais quer na vida é estar nesse auditório. Sua família, no entanto, tem problemas mais urgentes com os quais lidar. Eunice, a irmã, está naquela fase de querer sair de casa. Vê o mundo com outros olhos, influenciada pelos discursos dos professores na faculdade e pelas conversas com amigos. Quer ter seu próprio dinheiro, e mais do que isso, se assumir ao lado da namorada, com quem pretende dividir um apartamento. Já os pais dos dois, esses são mais humildes. Wellington quer ver o time do coração ganhar o campeonato, reunir os amigos para o churrasco do fim de semana e torcer para que sobre dinheiro para pagar todas as contas no final do mês. Mas é Tercia quem vai mais longe. Ele teme perder tudo o que, tão arduamente, conquistou. Se afastar dos filhos, do marido. Os sacrifícios que precisa fazer todos os dias. Em Marte Um, cada um ambiciona estar em um outro lugar. Mas é ali, um ao lado do outro, onde finalmente se sentem em casa.
Essas são pessoas que se encontram num Brasil que cada vez mais se ocupa em fechar-lhes as portas. É um país pós-eleições de 2018, quando a extrema direita assumiu o poder com um plano de governo que desrespeita as minorias, faz pouco caso das dores alheiras e se importa apenas com o privado, nunca com o coletivo. A mãe acorda cedo e atravessa a cidade no transporte público, indo de casa em casa dos clientes para empreender limpezas e faxinas, arrumando o dos outros como se seu fosse. O pai é zelador em um prédio da classe média alta, um faz-tudo que se esforça para estar sempre simpático e sorridente, pois acredita que um dia essa mesma consideração lhe será destinada. A filha presta atenção em sala de aula, sabendo que o que ali aprende poderá mudar sua vida e o mundo ao redor. Sabe que há muito a ser conquistado, mas percebe, também, que alcançar tais resultados é só uma questão de tempo, de dedicação e de oportunidade – e que, por isso mesmo, está disposta a lutar pelo que é seu por direito. O filho, por sua vez, é craque no futebol, mas esse desempenho atende mais a um desejo paterno do que seu próprio. Os pés estão na bola, mas a cabeça, nos céus.
Cada um sabe bem o quanto precisam daqueles ao seu lado para transformar a realidade que hoje conhecem. Tanto pela proximidade, como também pelo afastamento. Quando Tercia é vítima de uma pegadinha de um programa de televisão – uma bomba de mentira estoura dentro da lanchonete onde se encontrava num instante de descanso – passa a questionar sua existência e a destes que dela dependem. Mais ou menos como cada brasileiro ciente do tecido social ao qual se está inserido diante da posse de uma ideologia tão nefasta e contrária ao humano, ao múltiplo, ao diverso. As dívidas vão se acumulando, as pressões provocam angústia, os segredos precisam ser revelados. Mas sem discursos impositivos, muito menos um didatismo entediante e desnecessário. A lição, aqui, se dá pelo exemplo. Por um pegar de mãos, tão simples, mas absolutamente revolucionário. Alguns irão protestar. Poderão até reagir de modo mais resoluto, com algum tipo de indignação, mas será mais um reflexo ao que imagina ser esperado, do que o sentimento de fato. Aos poucos, portanto, virá a compreensão. E, com esse, o afeto.
Eis, enfim, a palavra que tão bem define Marte Um. Afetividade. Empatia. Essa capacidade que o ser humano possui, mas com tanta dificuldade exerce, de se colocar no lugar do outro e se permitir sentir as dores e as alegrias que lhes são externas, mas passíveis de identificação. Ir a Marte pode soar tão absurdo quanto se formar na faculdade, se tornar famoso nas redes sociais, comemorar seu aniversário, confiar num colega de trabalho, deitar no colo da namorada em público, fazer cinema. Há os que afirmam que qualquer um desses anseios é proibido, negado aos não iniciados. Mas há também aqueles que ousam querer mais. Que se reconhecem não apenas capazes, mas no direito de frequentar estes lugares e espaços. Fugir é não enfrentar. Ficar pode ser uma demonstração de coragem de maior impacto do que partir, se esconder, abdicar da sua verdade. O carteado de fim de noite pode ser conturbado, interrompido por discussões tardias e revelações incômodas, ainda que urgentes. Mas, acima de tudo, ele precisará continuar. Os pratos se quebram, mas a dança segue.
Gabriel Martins é um dos sócios da Filmes de Plástico, produtora mineira que tem conquistado cada vez mais reconhecimento no cinema nacional. Filmes como Temporada (2018) e No Coração do Mundo (2019), entre outros, contaram com seu nome em um ou outro estágio da produção, seja co-dirigindo, ou mesmo no roteiro, produzindo ou editando. Marte Um é o primeiro longa que assina sozinho, mas a identidade do grupo permanece viva. Esse pertencimento se estende também ao elenco, visto na presença de Rejane Faria, que após ter participado como coadjuvante em esforços anteriores dos mesmos realizadores, agora assume como protagonista com o destaque que lhe é devido. Ela é o alicerce, não apenas o cérebro, mas também o coração desse célula. É quem pulsa pelos demais, que apenas pelo olhar carrega um universo de entendimento e afinidade, que através de pequenos gestos transmite o acolhimento que cada um dos seus necessita. Carlos Francisco (Bacurau, 2019) e as revelações Camilla Damião e Cícero Lucas completam um time coeso e de impressionante alcance. Um filme de todos, e principalmente, por todos. Pelos que sobreviveram, pelos que seguem lutando. E, acima de tudo, que insistem em sonhar.
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