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Que a Disney é um dos maiores e mais bem-sucedidos estúdios de Hollywood ninguém duvida. O que poucos sabem, no entanto, é que ela é a única dentre as grandes majors que nunca ganhou o Oscar de Melhor Filme – o mais cobiçado de todos, naturalmente. As razões que possam justificar tamanho absurdo são muitas e de naturezas variadas, desde preconceito puro e simples até dificuldade de exercer uma leitura além do perfil geralmente fantasioso das produções da companhia. Para se ter uma ideia, sua primeira obra a vencer essa barreira de linguagem foi justamente Mary Poppins – cerca de quarenta anos após a fundação da empresa! Indicado em treze categorias, levou cinco estatuetas, inclusive as de Melhor Edição, Canção Original (a inesquecível “Chim Chim Cher-ee”) e, claro, Melhor Atriz, para a protagonista Julie Andrews. Um feito e tanto, mas ainda assim aquém dos méritos deste longa encantador.
Avaliar criticamente Mary Poppins se tornou uma tarefa bem mais complicada – ou, sob outro ponto de vista, muito mais simples – após o lançamento de Walt nos Bastidores de Mary Poppins (2013), longa que se ocupa justamente de narrar a história por trás da realização do clássico. Afinal, muito do subtexto da produção original foi exposto neste filme mais recente, evidenciando significados que mereciam ser percebidos em um nível não tão óbvio. O título estrelado por Tom Hanks (como Walt Disney) e Emma Thompson (como P. L. Travers, autora da série literária Mary Poppins) se chama originalmente Saving Mr. Banks, ou seja, em uma tradução literal, Salvando o Sr. Banks. Em certa passagem da trama, Disney afirma para Travers que deseja levar às telas a história “dessa babá que chega voando num guarda-chuva para salvar duas crianças”. Ao ouvir isso, a escritora revida: “se é isso que você pensa sobre meu livro, então você não entendeu nada”. Não são os pequenos Jane (Karen Dotrice) e Michael (Matthew Garber) que precisam de ajuda. Pelo contrário, são seus pais, o senhor (David Tomlinson, de Se o Meu Fusca Falasse (1968), e a senhora Banks (Glynis Johns, de Enquanto Você Dormia, 1995), que estão em perigo. E os sinais são evidentes.
Para começar, a mãe está tão envolvida em causas “urgentes” – como o voto feminino – que não tempo para a família. Já o pai vive constantemente preocupado com a ordem e a razão, sem se importar com brincadeiras infantis ou mesmo com uma boa risada. Com esse tipo de comportamento, os dois estão inevitavelmente se afastando dos filhos, e tal perda, quando consumada, pode ser irreversível. Mary Poppins é esse ser mágico, capaz de sentar em nuvens, adentrar em desenhos rabiscados no chão e dar ordens a brinquedos e demais objetos inanimados, que irá surgir para reverter essa situação antes que seja tarde demais. Para tanto, contará com armas poderosas e, ao mesmo tempo, bastante simples: ouvir e prestar atenção, seja nos pequenos ou nos adultos da casa da Rua das Cerejeiras, número 17.
Mary Poppins leva algum tempo até entrar em cena. Antes, somos apresentados ao dilema que a família Banks está enfrentando – nas últimas seis semanas quatro babás diferentes passaram pela casa, todas se declarando incapazes de cuidar dos pequenos. A Sra. Banks não tem condições de lidar com essa questão no momento – chega a pedir ajuda para a cozinheira e para a faxineira – mas quando o Sr. Banks fica a par do ocorrido, decide ele próprio assumir as rédeas da situação. Porém, ao invés de uma fila de candidatas convencionais ao cargo, a única que permanece para a entrevista de seleção é justamente Poppins, que vai até lá atendendo a um chamado muito especial. Com a ajuda do boa praça Bert (Dick Van Dyke, de Uma Noite no Museu, 2006), ela irá mostrar para as crianças que a vida pode ser muito mais do que pequenas estripulias infantis, ao mesmo tempo em que irão descobrir o valor do carinho e da amizade. Haverá espaço também para cada um dos familiares se dar conta da importância dos outros, e, juntos, resolverem seus problemas – sem discussões ou tensões exageradas, mas em harmonia, tal qual deve ser.
Robert Stevenson recebeu sua primeira e única indicação ao Oscar por Mary Poppins, mas não se tratava de nenhum novato, já tendo trabalhado com nomes como Orson Welles e Alfred Hitchcock. Ele demonstra talento e segurança na condução desta história mágica, que combina sentimentos verdadeiros com a fantasia dos desenhos animados, reunidos com perfeição impressionante, décadas antes do revolucionário Uma Cilada para Roger Rabbit (1988). Mas talvez seu maior mérito tenha sido revelar ao mundo o talento da novata Julie Andrews, que estreou no cinema com este trabalho, dando o troco após terem lhe negado a condição de protagonista na versão cinematográfica de Minha Bela Dama (1964), papel que acabou ficando com Audrey Hepburn – apesar de Andrews ter se consagrado na versão da Broadway. A atriz cria uma personagem tão fantástica quanto encantadora, que combina elementos de uma figura doce e enérgica com a própria personalidade da autora (como foi possível perceber pela composição de Emma Thompson, tantos anos depois). E, acima de tudo, por nos fazer acreditar que, de posse do seu guarda-chuva, ela permanece atenta, pronta para aterrissar em qualquer casa em apuros. Pois, independentemente do drama que esteja sendo enfrentado, com uma pequena colher de açúcar tudo fica mais doce. Tanto na fantasia quanto na vida real.
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