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Sinopse

Uma decisão judicial obriga os mascarados da Festa do Divino a saírem com um número de identificação. Inconformado, um grupo deles tenta invadir a prefeitura da cidade. Quatro jovens, trabalhadores de uma pedreira, lidam de maneiras distintas com a eminência da festa e a exploração trabalhista.

Crítica

Em resposta à criminalização da classe artística fomentada por membros do governo e seus partidários, diversos filmes pós-2019 têm incluído letreiros lembrando que centenas de trabalhos foram gerados através do projeto, que ele movimentou a economia, que o investimento produziu lucro. O início de Mascarados (2020) oferece um discurso semelhante sem a necessidade de qualquer letreiro: enquanto trabalhadores braçais quebram e carregam pedras, artistas constroem, em paralelo, máscaras para uma festa popular. A montagem equivale ambas formas de trabalho, colocando-as em pé de igualdade, como duas formas válidas de produção. Ambos constituem uma forma de produção válida, ambos fornecem um produto à sociedade. O artista torna-se operário numa sequência silenciosa, impecavelmente filmada, fotografada e editada.

A qualidade técnica salta aos olhos ao longo de toda a produção. A direção de fotografia trabalha tão bem em interiores quanto em exteriores, valorizando contrastes e reduzindo a profundidade de campo discretamente; a captação e edição de som valorizam os ruídos da rua e, portanto, a verossimilhança dos espaços; a montagem impecável ressalta a contemplação enquanto mantém o ritmo fluido; e a direção de atores molda uma ficção dotada de um despojamento típico do documentário, como apenas André Novais Oliveira, Gabriel Martins/Maurílio Martins e Affonso Uchôa/João Dumans têm obtido em seus filmes recentes. Cenas banais como o pai e o filho jogando videogame, provocando-se em busca da vitória, transparecem um cuidado de mise en scène excepcional, que jamais sobrepõe a estética à narrativa. Existe um refinamento de linguagem travestido de simplicidade que impressiona ao longo de sucintos 66 minutos de duração.

Ao mesmo tempo, os rostos adquirem um valor dramático fundamental nesta obra sobre injustiças e reinvenções. Quando o patrão declara que vai fechar a pedreira sem fornecer qualquer tipo de compensação financeira aos trabalhadores, a imagem se concentra no rosto imóvel e bastante expressivo do funcionário com 13 anos de experiência naquela empresa. Nas cenas seguintes, ele será visto deitado na cama, ou com o olhar perdido dentro da cozinha de casa. Existe uma sensação de desolação e de obsolência muitíssimo bem transmitida pelos silêncios. Na televisão, um noticiário lembra a proibição de portar máscaras e ocultar o rosto, algo que viria a afetar as festividades locais. Ironicamente, os protagonistas recorrem a máscaras sobre máscaras: por cima de uma representação lúdica, com desenhos e personagens fictícios, vestem uma máscara neutra imitando o rosto humano. O filme valoriza então a expressão e a não-expressão, o silêncio enquanto comunicação e enquanto resistência. O rosto do operário, assim como nos melhores documentários, carrega mais força sobre sua vivência do que qualquer fala a respeito poderia fazê-lo.

Seria tentador aproximar Mascarados de alguns dos melhores filmes nacionais dos últimos anos. A presença de Aristides de Souza no elenco e de Affonso Uchôa na montagem, além das sequências de trabalho braçal, remetem evidentemente a Arábia (2017); a alternância entre a linha de montagem com o respiro das festas populares se assemelha a Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar (2019), de Marcelo Gomes; a exploração de pessoas com máscaras de animais lembra momentos alegóricos de Boi Neon (2015), de Gabriel Mascaro; a presença do cachimbo em conjunção com a música ritualística remete à expressão da cultura popular em Azougue Nazaré (2018), de Tiago Melo. Mesmo a reunião de trabalhadores para resolver uma injustiça, com espingarda na mão e tom épico, poderia remeter à revolução social de Bacurau (2019), de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho. O filme dos diretores Marcela Borela e Henrique Borela se filia a estas produções de alto nível que combinam realismo e alegoria, no entanto, possui méritos próprios capazes de distingui-lo dos demais.

O resultado se demarca primeiro pela narrativa minimalista, resolvendo de modo eficaz o conflito de cada personagem em poucas cenas, sem recorrer a reviravoltas espetaculares. A noção de justiça é sugerida ao invés de explicada – vide a belíssima cena da corrida/fuga floresta adentro. A poesia do cotidiano está impregnada em cada cena, a exemplo do cachorro dormindo ao lado de uma serra barulhenta, ou da chegada e partida de uma motocicleta ao lado de um protagonista calmamente sentado na calçada de casa. Mesmo as máscaras tornam-se personagens autônomas, aparecendo em fragmentos, observando os humanos por conta própria, sozinhas, dispostas sobre móveis ou penduradas nas paredes, até enfim adquirirem seu conflito narrativo próprio. Uma cena de aparência anódina resume o notável olhar humanista dos diretores: durante uma festa, várias pessoas bebem e dançam na pista central. Seria tentador filmar apenas as luzes e os movimentos dos corpos, como fariam a grande maioria dos projetos. Ora, Mascarados rapidamente se volta à região dos banheiros químicos, ao pipoqueiro do lado de fora, aos barulhos da rua em frente à festa. O drama nunca para de perscrutar a margem, o que se esconde por trás ações centrais, o que se diz nos momentos de silêncio, o que se esconde nos espaços fora do enquadramento.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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