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Crítica


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Sinopse

Masha cresceu tendo uma proximidade incomum com a violência. Seu tio é um dos chefes do crime local e boa parte de seus primos também opera na marginalidade. A pequena sonha em ser cantora, mas não perde uma oportunidade de brincar com armas de fogo e exercer o poder que carrega de modo inerente junto com o temível sobrenome.

Crítica

Aos 13 anos, Masha (Polina Gukhman) tem uma ideia bem distorcida da violência. Ela não perde uma oportunidade de pegar a arma do tio ou as dos primos mafiosos, como se isso fosse uma atitude recreativa. Essa naturalização é pontuada algumas vezes durante os primeiros minutos do filme, principalmente para que fique evidente o desembaraço da menina ao lidar com os signos da brutalidade. Mais adiante, quando se sente frustrada por ter um amor não correspondido, ela utiliza suas prerrogativas como membro da família criminosa para dar uma lição no pretendente que "ousou" se interessar por outra garota. A protagonista que empresta seu nome à produção selecionada ao Festival de Cinema Russo 2021 tem noção de que em suas veias corre um sangue temido como ácido. Ao se deparar com os valentões que querem maltratar seu amor pré-adolescente, faz questão de soltar o chamado “carteiraço”, algo do tipo: “você sabe com quem está falando?”. Portanto, pode-se esperar que o longa-metragem comandado por Anastasiya Palchikova seja basicamente sobre essa inocência pervertida por uma criação bastante peculiar. Sabendo que é uma das queridinhas do Padrinho (Maksim Sukhanov), Masha exerce uma intimidação que condiz com o peso simbólico de seu sobrenome. Pena que a realizadora não utilize esse cenário para construir uma tragédia densa ou grandiosa.

Num primeiro momento, Masha parece que vai pegar emprestada da saga O Poderoso Chefão a lógica da desgraça/danação condicionada pela família, ou seja, a do fardo que é herdado automaticamente. Masha não escolheu em que clã nascer mas, como boa parte dos primos e demais parentes, se beneficia da atmosfera de terror imposta e mantida pelo tio na vizinhança. A pré-adolescente precisa lidar desde muito cedo com a dor das perdas, mas isso é pouquíssimo enfatizado no filme. Por exemplo, ela se depara com o assassinato do melhor amigo, o capanga que funcionava como seu anjo da guarda. E a realizadora não investe tanto quanto poderia na acumulação de dores que, como essa, afirmam à Masha que no mundo dos adultos é impossível infantilizar armas, mortes e afins. A realizadora se limita a mostrar as fatalidades acontecendo e os lamentos imediatos. Não mais do que depressa, dá saltos temporais que minimizam os efeitos do sofrimento. Das duas uma: 1) ou a intenção (não clara) é dizer que a menina está se tornando praticamente insensível em virtude dos contatos precoces com a selvageria; 2) ou o longa-metragem involuntariamente acaba depreciando o drama em favor do acúmulo que anestesia as coisas. Anastasiya Palchikova ensaia tratar a repentina entrada do interesse romântico de Masha no crime como algo capaz de definir como a pequena ressignifica os seus. Porém, isso não acaba se concretizando, pelo menos não de um modo que justifique esse recorte.

Masha é embalado por músicas muito bonitas (e conhecidas) que fornecem uma espécie de contrapeso de beleza aos frequentes rompantes de violência. A protagonista que deseja ser cantora, dada a murmurar canções eternizadas na voz de Ella Fitzgerald, é cercada de coadjuvantes que chegam a desempenhar funções redundantes. Quando o protetor de Masha é assassinado, outros sujeitos (com menor destaque) assumem esse papel; a mãe tenta ser uma voz da razão para sua filha cada vez mais familiarizada com a bandidagem, algo que a mãe do namoradinho de Masha também tenta fazer enquanto protetora. Se em O Poderoso Chefão o cineasta Francis Ford Coppola mantinha a sensação de que algo poderia acontecer a qualquer momento, de que ninguém estava seguro, aqui essa noção é mais pronunciada do que sentida. Ainda que o filme se esforce para desenhar um panorama de regras ditadas (impostas, sem negociação) pela criminalidade, no qual o poder muda de mãos ao sabor das disputas agressivas, mesmo as cenas de ataques têm efeitos breves e logo dissipados. Anastasiya Palchikova vai adicionando componentes à trajetória singular de Masha, tais como o pai ausente, a mãe de mãos atadas, o rapaz que logo percebe o erro de flertar com o perigo. Talvez, o intuito seja o de fazer um estudo de personagem. Mas, para isso seria preciso ir bem mais a fundo.

Em vários filmes, vemos meninos fisgados pelo glamour de bandidos endinheirados (sobretudo em cenários pobres). Também não são raros os longas-metragens nos quais homens são definidos pela forma como encaram a hereditariedade: assumem negócios da família ou quebram a corrente praticamente sagrada? Em Masha tudo isso poderia acontecer de novo, mas agora pela perspectiva feminina. Porém, a realizadora prefere mostrar sua personagem principal, basicamente, como alguém que entende aquela vida como natural. Pena que várias perguntas surgidas a partir disso fiquem sem respostas: qual o grau de responsabilidade da mãe na aproximação de Masha com o Padrinho? O pai é ausente por vocação ou foi se distanciando para perder a ligação perigosa com a agressividade do cunhado? O que aconteceu à Masha entre a pré-adolescência e a vida adulta? O problema está no excesso de pontas soltas e nas informações pouco desenvolvidas. Essas indagações são tratadas como partes sem personalidade de um contexto. A disputa entre pai e filho por uma mulher, o passado dos pais de Masha, a situação dos demais membros da família, a extensão da força do Padrinho, a identidade dos rivais, são alguns dados que não ganham atenção condizente com suas relevâncias. O resultado é uma história morna, cuja vingança nem determina se o ciclo de pavor acaba ou se ganha um novo líder.

Filme visto online no 2º Festival de Cinema Russo, em setembro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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