Crítica
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Crítica
Em 1986, Pedro Almodóvar, com Matador, pode ter lançado mais um entre tantos títulos que compõe a cinematografia espanhola. Porém, mais importante que isso, levou ao público um cinema, dentro de proporções singulares, sobre o significado de ser espanhol. Identidade esta retalhada durante muitos séculos pela miscigenação, entre outros, das culturas judaica, cristã e islâmica, numa heterogeneidade que, se aos desatentos se transfigura em cores locais, à minoria reflete antagonismo sociais e morais ainda hoje existentes.
¡Fue sueño ayer y mañana será tierra!
¡Poco antes, nada y poço después, humo!
¡Y destino ambiciones y presumo
Apenas punto al circo que me cierra!
Esta poesia, intitulada Signifícase la propria brevedad de la vida, sin pensar y con padecer, salteada de la muerte, é de Francisco de Quevedo, provavelmente o mais importante e mais lido poeta espanhol. Os versos identificam não mais que o traço constante no horizonte do seu povo: a morte.
Em Matador, temos Ángel (Antonio Banderas), aprendiz de toureiro, que, na tentativa de superar seus fracassos e insatisfações pessoais, resolve assumir a culpa dos assassinatos cometidos por Diego Montes (Nacho Martínez), seu professor. A leitura que parece permear o desenrolar da história é de caráter estritamente espanhol, pois tudo parte da analogia de que a arte de tourear e a arte de conquistar se equivalem, sendo drenadas pelo prazer encontrado tanto na morte quanto na relação sexual. A obsessão, por sua vez, aparece como substância fundamental para mediar e estabelecer as relações que só ganham sentido, em Almodóvar, na sua máxima expressão. Seguindo este caminho, a religião ocupa um papel que, se em um primeiro momento recebe destaque, acaba por perder espaço e vigor no avanço da narrativa. Basta, entretanto, o tímido aparecimento deste elemento – inúmeras vezes presente na filmografia do diretor – para que recaia sobre ele toda a repressão do indivíduo, muitas vezes canalizada na conduta obsessiva.
Dimensionadas em uma só, a arte de tourear e a de conquistar tem em comum a posição de virilidade extraída diretamente do toureiro. Desta forma, ninguém se apresentaria a Ángel como melhor conselheiro que Montes. Ao aconselhá-lo sobre o modo de agir com as mulheres, Diego questiona a sexualidade do discípulo que, incomodado pela suspeita, decide provar sua masculinidade da forma mais primitiva, buscando afirmação no estupro de sua vizinha (Eva Cobo). Os atos de Ángel se maximizam ao sabermos que sua criação se deu no berço de uma família da Opus Dei e constantemente lhe é cobrado o exercício religioso. Em uma visita à igreja, sua mãe Berta (Julieta Serrano) pede ao jovem que se confesse e, proporcionando ao público uma belíssima cena-fusão, o diretor faz com que a simples caminhada de Banderas desemboque não no esperado confessionário, mas na entrada da delegacia. Recurso não unicamente justificado pela necessidade de assumir, posteriormente, a culpa e dar início ao gênero policial, mas também para sinalizar a hierarquia de uma Espanha que muda gradativamente.
A autoestima de Ángel torna-se cada vez mais comprometida no momento em que, ao intimarem sua vizinha para depor, a mesma alega que o estupro não ocorreu porque seu agressor simplesmente “falhara” - numa alusão dupla ao fracasso sexual e moral. Sem perspectivas e perseguido pela constante humilhação, Ángel, numa atitude que controversamente poderíamos denominar como autopunitiva, assume a autoria de quatro crimes ainda não solucionados pela policia madrilena.
Em poucas horas, Ángel tem sua situação realmente complicada, e quando os lábios de um exuberante vermelho aparecem na tela, a advogada María Cardenal (Assumpta Serna) é questionada sobre o motivo de querer defender o acusado. Esta, em uma resposta digna de Quixote, ícone da cultura espanhola, alega: “gosto de grandes proezas”. A partir de então, o eixo fílmico se desloca e dois elementos principais são estabelecidos. Montes e Cardenal, casal “destinado” a ficar junto na busca do mais intenso dos prazeres, e Ángel que, como peça-guia da história, resolve selar sua culpa ao mostrar onde estão enterrados os corpos dos assassinados. O destino, no entanto, tão irremediável aos espanhóis, faz com seja descoberta a aversão do jovem a sangue e, frente ao novo fato, torna-se óbvia a mudança de rumo da trama.
Em um filme que se estende por menos de duas horas, Almodóvar expõe com precisão e segurança o resultado da união de elementos que compõe o país no qual nasceu: ritos, obsessões e paixões ardentes. Detalhes que, se nunca distantes de toda a obra do diretor, poucas vezes refletiram tão intensamente os contrastes delicados de um povo esculpido pela dança e pela batalha. Irremediavelmente, Matador é o símbolo maior de uma Espanha que completava dez anos sem Francisco Franco; dez anos de uma nova cara espelhada em uma mesma alma.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Willian Silveira | 8 |
Chico Fireman | 7 |
Ailton Monteiro | 7 |
Francisco Carbone | 8 |
Bianca Zasso | 8 |
MÉDIA | 7.6 |
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