Crítica
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Sinopse
Os habitantes de uma vila no Peru organizam um festival em homenagem ao santo padroeiro da cidade para acabar com a dor causada pelo desaparecimento de vários parentes. Os moradores acreditam que, se o santo estiver satisfeito, o local poderá terminar seus anos de luto.
Crítica
Existe um estranhamento neste drama peruano que ultrapassa o fato de não sermos informados sobre o tema, sobre as conotações do título original, nem o local em que se passa a ação. A mise en scène do diretor Oscar Sánchez Saldaña aposta em composições rígidas: os personagens, camponeses locais, caminham e param no terço ideal de um enquadramento que estava à espera da chegada deles. Depois cantam, movem-se um pouco, param em outro lugar. Estes seres humanos sem passado nem futuro, sem vontade nem personalidade, servem a rechear as imagens preconcebidas pela direção. Pensa-se primeiro os recursos (filmar através do buraco de uma fechadura, por exemplo) para em seguida imaginar o que estas imagens podem conter.
Isso implica numa atenção muito especial à forma. No entanto, o formalismo proposto pelo diretor de fotografia Marco Arauco está longe do que se espera de uma produção refinada. A imagem é dessaturada até beirar o preto e branco, porém deixando alguns aspectos levemente coloridos, em tom esverdeado. Em conjunção com o digital de baixa qualidade e o aspecto pouco contrastado das baixas luzes, sem falar nos frequentes desfoques e câmeras lentas, tem-se uma composição cinzenta, de pouco relevo, que não contribui a destacar este espaço nem valorizar as ações. A montagem efetua curiosos fades, um tanto abruptos, que interrompem as cenas antes de suas conclusões, e mesmo a filmagem de cenas musicais retira de foco a origem da música ou o efeito psicológico causado pela mesma. Os personagens passam a toda a duração do filme louvando o padroeiro local, mas a estética se revela incapaz de demonstrar a força desta entrega.
Em termos narrativos, os camponeses são reduzidos a uma coletividade anônima. Pela ausência de close-ups nos rostos, pela eliminação dos diálogos e pela ínfima interação dos indivíduos com o espaço, eles sequer se transformam em personagens de fato (no sentido de efetuarem atividades, se envolverem em conflitos e fazerem a trama avançar). Compreende-se, via separação por capítulos, que estas pessoas veneram o patrono Santiago, mas por que esta figura religiosa teria valor especial neste lugar? Como se elaboraram tantos cantos ou práticas diárias ligadas ao santo? Existe alguma forma de hierarquia neste vilarejo conservador, entre homens e mulheres, entre Santiago e outros santos? Mataíndios preserva o caráter observador e descritivo, limitando os camponeses a objetos de estudo por quem não se demonstra real interesse.
Talvez tamanho distanciamento pudesse resultar num estudo conceitual – como observar as pessoas sem qualquer julgamento moral, como transformar o povo em protagonista, como observar personagens pelo prisma da religião, sem qualquer outra informação. Ora, nenhum desses fatores é explicitado pela direção, que parecia, no entanto, possuir farto material humano à disposição. Quando as imagens obtidas “através do buraco da fechadura” retornam, no epílogo, e o tal “filtro da porta” se move através de planícies, para observar crianças quebrando ícones religiosos. Mesmo assim, a narrativa jamais investiga tamanho potencial de conflito. Para um filme que prenuncia uma crônica do cristianismo latino-americano, a destruição de ícones certamente traria um significado forte. No entanto, a ferramenta estética é tão intrusiva que não chama atenção a nada mais do que a si própria.
Por fim, esta ficção de olhar documental não possui nem o aspecto de criação típico das ficções, nem a responsabilidade com real esperada dos documentários. O resultado atravessa sua duração sem deixar marcas, como uma sucessão de fotografias tão impessoais e descontextualizadas que perdem seu significado por entre cenas. Devido ao amadorismo estético, lembra os famigerados trabalhos de escolas de cinema, quando alunos iniciantes intuem ser uma ótima ideia filmar de perto a chama de uma vela em câmera lenta, em preto e branco digital, até perceberem, com um mínimo de distanciamento, que a “sacada” sublinha a total desconexão com a trama e com os demais recursos de linguagem empregados. Há boas intenções perdidas em algum lugar para cá da fechadura da porta, mas enquanto ferramenta de comunicação, o resultado se revela frustrante.
Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.
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