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Sinopse

Dois homens enterram vários cadáveres numa floresta durante a ditadura paraguaia. Porém, eles descobrem alguém ainda respirando na pilha de corpos.

Crítica

O Paraguai também foi assaltado na segunda metade do século 20 por uma ditadura militar. Durante mais de 35 anos (entre 1954 e 1989), foi governado por Alfredo Stroessner. Matar a Un Muerto oferece um recorte específico dessa história de arbitrariedades, repressão, violência e defuntos. Ever Enciso e Aníbal Ortiz interpretam sujeitos encarregados pelo governo de literalmente ocultar os cadáveres do regime. Todos os dias eles recebem os chamados “pacotes” na beira do rio, os deslocam em padiolas ao seio da floresta, finalmente os enterrando em buracos posteriormente cobertos de cal. Mas, o cineasta Hugo Giménez não demonstra tanta preocupação com o ritual, tampouco em compreender se os protagonistas o executam por alinhamento com a ideologia então vigente ou por conta de uma obediência cega que não tem a ver com a inclinação política. Ele tenta criar uma atmosfera de tensão utilizando a dinâmica do animal que ronda o acampamento e o isolamento que dificulta os personagens saberem notícias da Copa do Mundo de 1978, pois o rádio quebrou.

Dentro desse trabalho, há uma ordem hierárquica simétrica a vista em O Farol (2019), filme dirigido por Robert Eggers e que igualmente conta com um veterano escolhendo quais áreas da missão lhe são exclusivas e que tipo de incumbência passará autoritariamente ao imediato mais jovem. Porém, qualquer investigação dessa relação ou do posicionamento dos paraguaios diante do empregador afeito a tratar corpos humanos como espólios que não devem ser exibidos, pelo contrário, vai por água abaixo quando a sobrevivência improvável de um prisioneiro lhes aponta um dilema moral. Desse instante em diante, Matar a Un Muerto deixa de lado o estudo da clausura na ilha, a comunicação com o mundo externo convulsionado por uma tensão sócio-política, e fica restrito a uma “escolha de Sofia”. Os empregados cumprirão sua designação, assim dando cabo do homem que deveria por ali ter chegado já sem vida, ou vão ceder paulatinamente diante de alguém expressando medos, anseios e apresentando personalidade não esperada do odioso “inimigo”?

Lamentável que Hugo Giménez opte por um caminho comum, o do gradativo reconhecimento do valor do outro com gestos de simpatia afrouxando as animosidades reinantes entre lados opostos de uma batalha cotidiana. O realizador passa a não mais investir no dado supersticioso de um coveiro da ditadura, tampouco na apatia palidamente desenvolvida do companheiro, o que primeiro se recusa a assassinar a sangue frio o intruso recuperado como num passe de mágica dos ferimentos. O futebol é um dado apenas curioso no filme, apresentado como elo entre a dupla apartada e as selvagerias encobertas pelas jogadas do maior campeonato de seleções de todos. A chegada do militar cuja missão é melhorar a comunicação com o mundo exterior é desprovida de aflição, algo determinante para que seja somente mais uma potencialidade desperdiçada nesse filme que logra êxito parcialmente ao evocar o passado como exemplo do que não fazer no futuro. Logo, parece que o cineasta está estendendo para além do produtivo a ótima, porém mal desdobrada, premissa.

Matar a Un Muerto não consegue entrelaçar os personagens principais e o cativo, deixando laços frouxos tomarem as rédeas e determinar grande parte do resultado. O sujeito idoso parece orientado pelo pragmatismo, apesar das mandingas. O outro soa como mero faz-tudo, capataz que reclama autonomia quando diante de algo pretensamente ferindo seus princípios – mas sepultar homens e mulheres assassinados pela ditadura também não os agride? Longe de mostrar o passado ou mesmo as singularidades dessa dupla de atitude complementar, Hugo Giménez se restringe a desenhar indícios básicos das personalidades de ambos e coloca-los frente a uma encruzilhada. Assim, acaba desperdiçando o pano de fundo histórico, exatamente por evitar contestar/abordar diretamente as circunstâncias intrínsecas ao período em que o Paraguai vivia sob o jugo dos militares. Falta ao filme um clima espesso de tensão, sem o qual perde a excelente oportunidade de evadir os limites e as fronteiras demarcadas por um conjunto de preceitos nunca explorado devidamente.

Filme visto online no 48º Festival Internacional de Cinema de Gramado, em setembro de 2020

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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