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Crítica


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Sinopse

Após perder entes queridos, o protagonista se esconde numa terra segura, repleta de memórias vivazes, na qual aqueles que ama continuam vivos.

Crítica

Criou-se um conceito de que animação é um gênero cinematográfico voltado para o público infantil. Bom, não há apenas um, mas dois grandes equívocos na declaração acima. Para começar, o desenho animado não é um estilo, e, sim, um formato, que pode na sua narrativa escolher as mais diversas formas, da comédia ao terror, do suspense ao drama, e por aí vai. E depois, se alguém ainda pensa que apenas crianças podem desfrutar de uma produção desenvolvida a partir desta técnica, talvez fosse aconselhado se confrontar com Mate-o e Deixe esta Cidade, longa de estreia do polonês Mariusz Wilczynski. Transitando entre o grotesco e o perturbador, o cineasta e artista plástico mergulha em um universo de pesadelo que não apenas visa se livrar de alguns dos mais perturbadores traumas que foi agregando durante sua existência, como também vislumbra imagens e sonhos situados em uma zona não muito bem definida entre ilusão e realidade. Um resultado muitas vezes indigesto, mas não por isso desprovido de um intenso e impressionante valor estético.

Por mais que se possa suspeitar da existência de um protagonista, melhor começar qualquer processo de absorção e busca de um entendimento do que Wilczynski intenciona transmitir através de seu filme como a soma de diversos episódios que, no conjunto, se tornam mais amplos do que cada um dos seus fatores em separado pode proporcionar. Há desde passagens singelas, como um encontro fortuito num trem, cujo destino não chega a ser declarado com todas as letras, como o navegar de uma embarcação tão poderosa – quando vista de perto – como frágil – uma vez que o espectro de observação se aumenta assim que um necessário distanciamento é estabelecido. Tudo, como se vê, pode ser uma questão de ponto de vista. O óbvio só assim pode ser percebido se lido de imediato, pois qualquer reflexão mais profunda poderá apontar para outros caminhos e interpretações.

A dor dos que já se foram é melhor trabalhada quando parte de um tratamento de recuperação que não apenas se esforça em alargar os sentimentos, mas também descobrir como melhor lidar com cada um deles. Assim, é possível a leitura de que Mate-o e Deixe esta Cidade é não mais do que um aglomerado tanto de lembranças como também de fantasias do próprio autor, que uma vez revisitadas através de uma posição privilegiada que apenas o tempo pode proporcionar, podem ou não acabar se confundindo. Por isso, uma melhor significação tanto da trama como do que cada um destes interlúdios em particular tem a dizer só pode ser melhor percebida através desse prisma. Um exercício reiterativo e desgastante, mas que compensa pela miríade de cenários pelos quais acaba desbravando.

Com mais de seis décadas de vida, não chega necessariamente a ser uma surpresa o fato de Wilczynski já ter perdido muito dos seus amigos e familiares durante essa jornada. Alguns falecidos, outros simplesmente partiram, e há ainda aqueles que foram importantes numa época muito específica, mas que com o passar dos anos acabaram se distanciando. Pois bem, o tempo presente verificado pela trama da ficção é uma mistura do agora com o antes e o depois, como se tudo estivesse ocorrendo ao mesmo tempo, em instantes e momentos diversos, mas alinhados por uma percepção capaz de acumular, e nunca dividir. Muito do que é dito termina por encontrar sua ressonância, mas outros tantos terminam perdidos pelo caminho. É um jogo de apostas, nem todas funcionam, mas as que acertam fazem tanto barulho que acabam valendo pelas demais.

Muitas vezes indigesto e outras tantas simplesmente intraduzível, Mate-o e Deixe esta Cidade se revela uma experiência que somente se justifica mediante o esforço do espectador e da disposição deste para mergulhar em águas tão profundas que, na maior parte das vezes, nem chega a permitir que a luz o acompanhe para iluminar o que vai sendo exposto como companhia. Sofrido, porém na mesma proporção inebriante, faz da angústia com que lida com seus desenhos possíveis e impossíveis um quadro de encantamento e perdição que tanto pode ser apreciado por tudo que inclui como também acusado pelo que opta por deixar de fora. Confuso, difícil e capaz de exaurir até mesmo os mais dedicados, é fruto de algo que apenas o mais criativo traço pode se dar ao luxo de imaginar, tanto para o bem quanto para o mal.

Filme visto durante a cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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