Crítica
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Sinopse
Neo segue em sua busca desesperada para salvar as pessoas das dominações das máquinas. Mas, será que ele já não fez isso anteriormente?
Crítica
O rei está morto! Longa vida ao rei! O dito francês, que hoje faz parte do cenário popular, se aplica com precisão ao visto em Matrix Resurrections, quarto longa da saga iniciada em 1999 pelos então irmãos Andy e Larry Wachowski. É importante essa observação pois ambos, nesse intervalo de mais de vinte anos, se assumiram como mulheres transgêneras, e hoje atendem pelos nomes de Lilly e Lana. A matrix e o conceito que envolve os quatro filmes (e seus desdobramentos, como videogames, animações, livros etc) podem ser interpretados das mais diversas formas, inclusive como um processo de auto-aceitação em se assumir como se é de fato – algo próximo do vivido na vida real pelas realizadoras. E se Lilly optou por se abster de qualquer tipo de envolvimento com este novo capítulo da história iniciada pelas duas, ficou sob a responsabilidade de Lana mostrar que não bastava apenas se amar, mas também ao próximo. O que se tem aqui, portanto, é não mais do que uma história de amor. Com tudo de inovador – e previsível – que tal definição por si só carrega.
No final de Matrix Revolutions (2003), tanto Neo – o escolhido, o salvador, aquele sobre o qual todas as expectativas se depositavam, vivido por Keanu Reeves – quanto Trinity – a amada, sua força-motriz, a que o descobre e lhe revela um novo (e desafiador) mundo, interpretada por Carrie-Anne Moss – se sacrificavam em nome de algo maior, a salvação de Zion, a última cidade ainda habitada por pessoas e símbolo-maior da resistência humana. Pois bem, se a jornada de ambos era dada como encerrada – tal leitura reafirmada inúmeras vezes pelas diretoras, que repetidamente recusaram convites para voltar a esse universo – uma tecnicalidade as forçou, mais uma vez, a fazer uma escolha. Afinal, por mais que tenham sido elas as criadoras dessa proposta, a obra resultante pertence a algo maior, e a Warner respeitou a vontade delas o quanto pode – ou o máximo possível até as caixas-registradoras se manifestarem. Em meados dos anos 2010 começou a circular uma notícia de que uma sequência teria sido encomendada, e dessa vez sem a participação das Wachowski. Foi o que bastou para Lana rever sua posição e retomar o controle do que sempre foi seu.
Essa é mais ou menos o caminho que Neo – ou Thomas Anderson, como é mais uma vez apresentado – novamente percorre. No começo de Matrix Resurrections, ele está mais uma vez preso na Matrix, assim como sua antiga parceira, agora atendendo pelo nome de Tiffany. Os dois não possuem memórias de quem foram ou do que viveram juntos, ainda que sejam frequentemente assombrados por pesadelos que podem, ou não, soar como lembranças provocadoras ou avisos alarmantes. Tom é um conceituado desenvolvedor de videogames, enquanto que Tiff leva uma vida bem-casada, com filhos e uma curiosa paixão por motocicletas. Mas a ameaça das máquinas segue presente. E não tardará para uma nova equipe resgatá-lo desse estado adormecido e apelar para que volte ao combate. Mas ele tem um pedido antes. Não deseja seguir sozinho. Como ir em frente, afinal, sabendo que a mulher que sempre esteve ao seu lado ficaria para trás? Portanto, assim como o primeiro filme tinha uma premissa clara (o despertar do protagonista e o confronto com um antagonista estabelecido), e os dois seguintes se desenvolviam num mesmo sentido (a preservação do refúgio remanescente), dessa vez a busca é de um pelo outro. Dos laços que os unem, estejam as partes cientes ou não dessa ligação.
Há muito o que ser dito, e o roteiro escrito pela cineasta em parceria com David Mitchell e Aleksandar Hemon (parceiros desde a série Sense8, 2017-2018) dá conta dessas explanações, em mais de uma situação de modo excessivo. Tanto as ideias propostas tempos atrás como as novas agora desenvolvidas ocupam a narrativa em demasia, e não causará espanto se todo esse discurso mais afaste do que aproxime aqueles não iniciados nesse universo. Por outro lado, tamanho detalhamento abre espaço para olhares ainda não investigados, oferecendo um viés inédito mesmo diante de algo muito debatido e aprofundado. Mas se esta impressão é frequente na primeira metade, a conclusão é repleta de sequências antológicas, seja por movimentos inesperados como pelo uso de inovações que lhes são próprias. Aliás, a metalinguagem se manifesta de modo inequívoco, agregando humor e outras camadas de interpretação, principalmente ao tratar de tirar o ‘elefante da sala’. Ou seja, ao abordar frontalmente qual a função desse episódio e o que deve ser discutir a partir dele, a despeito dos comentários que sua realização permitem.
Para os fãs, o deleite se dá desde o começo. A partir de uma narrativa absolutamente referente à trilogia original – há flashbacks com cenas dos três longas anteriores pontuando a trama do início ao fim, inclusive com a participação de atores que não voltaram, como Laurence Fishburne e Hugo Weaving – a sensação de familiaridade é constante. Keanu parece ter nascido para ser O Escolhido, aliando sua aparente apatia a um sentimento que combina tanto o desconhecimento das próprias capacidades como uma segurança frente às barreiras a serem superadas. Por sua vez, Moss volta ao papel que lhe faz famosa com tranquilidade e confiança. Os dois possuem química juntos, por mais que essa sinergia nem sempre seja traduzida em sensualidade – é mais uma combinação de forças do que uma dependência mútua. Nesse sentido, a mensagem dessa vez desenvolvida termina por fazer efeito: deixar claro que, desde o começo, Trinity sempre fora tão importante quanto Neo. Há uma agenda digna do presente que não existia duas décadas atrás – a que preza pelo empoderamento feminino – mas há mais do que apenas um equilíbrio de tempo em cena: os dois, de fato, se completam, e, enfim, suas relevâncias foram colocadas no mesmo patamar.
As ausências dos citados Fishburne e Weaving abriram espaço para recém-chegados aproveitados de modo um tanto irregular: se Yahya Abdul-Mateen II é destaque no início, logo vai ficando em um segundo plano, ao contrário de Jonathan Groff, que ganha terreno com o desenrolar dos acontecimentos, até se mostrar uma ameaça à altura do manto do Agente Smith. Da mesma forma como é bom reencontrar Jada Pinkett Smith e Lambert Wilson (seu Merovíngio responde por algumas das melhores tiradas), Neil Patrick Harris (o Analista) e Priyanka Chopra Jonas (Sati) se mostram excelentes acréscimos, sem ofuscar seus colegas de cena, ao mesmo tempo em que se despedem deixando um gosto de “quero mais”. Por fim, a revelação é mesmo Jessica Henwick (Star Wars: O Despertar da Força, 2015), que faz de sua Bugs uma guerreira tanto tática quanto no campo de ação. É curioso que nesse final de 2021 dois dos lançamentos mais aguardados da temporada – esse e Homem-Aranha: Sem Volta para Casa – falem, basicamente, sobre o quão necessárias são segundas chances. Assim, Matrix Resurrections é mais do que uma retomada de um cânone, mas uma apropriação, abrindo portas a serem exploradas e oferecendo uma atualização que chega em momento justo, tanto pela urgência do debate que propõe como pelas verdades com as quais lida, que vão desde o ouvir o outro até a busca pelo diálogo acima de qualquer embate.
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