Crítica
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Sinopse
Crítica
A realidade que Medida Provisória nos apresenta é distópica, ou seja, uma conjuntura social de extrema opressão, caracterizada por um Estado que utiliza meios constitucionais para ser fundamentalista. Embora essa noção do “estamos seguindo os trâmites da lei” não seja discutida por qualquer personagem, ela aparece rapidamente na transmissão da sessão no congresso em que os parlamentares votam uma lei desumana – não por acaso, a cena lembra a votação que encaminhou o impeachment-golpe que derrubou a presidenta do Brasil Dilma Rousseff em 2016. Portanto, estamos diante de um país que legaliza a discriminação. Aliás, o filme abre com a tentativa inglória de um representante negro da ala jurídica de refutar o preconceito institucionalizado. O recuo da câmera que apresenta o plenário esvaziado reforça essa dimensão de um teatro armado pelos juristas brancos. Sim, pois a tal lei arbitrária, primeiro, cria uma espécie de programa que “permite” aos negros voluntariar-se para voltar à África. Mais tarde, como provavelmente a “oportunidade” absurda não tem a aderência pensada, ela se transforma numa deportação forçada de todo e qualquer cidadão de melanina acentuada (é assim que os negros são chamados nesse futuro aterrador) ou que lembre remotamente os traços dos povos que vieram escravizados para o Brasil. A premissa é bem apresentada na primeira parte do filme.
Medida Provisória carrega características de melodrama social, tem partes cômicas, flerta com o pós-apocalíptico dentro da ideia da distopia, apresenta toques de aventura, brinca com o cinema de ação, tudo com a intenção de estabelecer uma comunicação descomplicada. Seu Jorge como o blogueiro sempre de celular em punho denunciando as vilanias do Estado, em meio às tiradas bem-humoradas e sarcásticas, é o destaque não apenas da fase de apresentação, mas de todo o elenco. No entanto, ele infelizmente não é o protagonista. Esse posto é dividido entre Alfred Enoch e Taís Araújo. Eles interpretam o casal de heróis bem-sucedidos em suas profissões consideradas nobres na sociedade brasileira (advogado e médica). A combatividade política dele em nenhum momento se choca com a confortável e voluntária alienação dela. As nuances no enfrentamento dos absurdos que estão acontecendo nem chegam a engatilhar um conflito doméstico ou algo que o valha. Em sua estreia como cineasta, Lázaro Ramos foi buscar inspiração na peça Namíbia, Não!, de Aldri Anunciação, que ele próprio havia dirigido no teatro. E Lázaro estabelece em torno dos protagonistas esse mundo em ruínas para os negros, acentuando o sofrimento deles com a atitude segregacionista de personagens brancos, tais como a vizinha de Renata Sorrah e a funcionária pública do tipo “estou obedecebdo ordens” de Adriana Esteves. Elas são caricaturas que acabam cumprindo funções dramáticas parecidas durante a trama.
O filme utiliza essas caricaturas para afirmar um ponto de vista. Por meio delas, inverte o processo narrativo de desumanização que muitas vezes transformou homens e mulheres negros em meros adereços nos filmes, sobretudo ao descaracterizar as suas subjetividades por meio de retratos grotescos. A narrativa brinca com arquétipos, embora nem sempre consiga potencializa-los. Em Medida Provisória, temos a resistência nos AfroBunkers (espécie de quilombos futuristas), a questão do colorismo vindo à tona como parâmetro, a agressividade do Estado que não tem vergonha de demonstrar-se racista e os heróis dispostos ao sacrifício. Porém, depois que todo esse universo está plenamente constituído, a história se bifurca entre a resistência de Antônio (Alfred Enoch) e André (Seu Jorge) num apartamento sitiado e a tomada de consciência de Capitu (Taís Araújo) num AfroBunker. Lázaro Ramos cria uma alternância burocrática entre esses dois núcleos persistindo em paralelo. Ele nem bem consegue extrair algo potente do calvário desses homens privados de luz, água e comida e tampouco dá conta da efervescência de assuntos que perpassam a vivência no local secreto em que as pessoas ainda podem permanecer escondidas. Lázaro não utiliza o tempo para desenhar toda aquela desgraça com os contornos de uma urgência. Grande parte do discurso do filme, sobretudo os pontos importantíssimos levantados, passam pura e simplesmente pelo falar. Personagens evocam temas e lutas sem dúvida vitais que se comunicam com a nossa atualidade. Muito é dito, mas pouco é debatido.
Medida Provisória passa por cima de certas lógicas para chegar rapidamente às suas sentenças. A saída de André e Antônio e o posterior incidente com o racista armado servem apenas para construir a ideia frouxa de resistência (via engajamento) na internet. E isso nem é desenvolvido. Por que cargas d’água o vizinho de porta, simpático aos perseguidos, não oferece mantimentos a eles, já que a segurança permanece sempre no andar de baixo? Voltando à questão do tempo, também falta urgência quando alguém de melanina acentuada se aventura pela cidade. Já a conscientização de Capitu é desenhada como uma epifania que implode repentinamente sua alienação. Há outras simplificações como essa, talvez um subterfúgio para tornar o discurso acessível, mas uma estratégia narrativa que não ajuda diante de questões tão complexas. Lázaro Ramos aposta firmemente nas catarses, mas se esquece de preparar o terreno para elas serem eficientemente purgatórias. A simultaneidade do assassinato do negro e do branco até pode tentar expressar a ideia do racismo afetando a todos indiscriminadamente, mas acaba gerando uma equivalência involuntária (nisso bastante questionável) pela forma como movimentos são sincronizados. Por fim, outro ponto frágil é o trabalho de Alfred Enoch (da saga Harry Potter), ator que não demonstra o vigor necessário ao papel, com isso não dando conta das demandas do personagem que pode ser compreendido como um leão enjaulado pelo Estado brasileiro racista.
Filme visto durante o 23º Festival do Rio, em dezembro de 2021.
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