Crítica
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Sinopse
Mariana é uma jovem que pertence fervorosamente a um mundo doutrinado pela fé. Na medida em que precisa se esforçar para aparentar uma perfeição constante, ela luta para resistir às tentações enquanto coloca em xeque a violência com a qual ela e as amigas reprimem as pessoas que pensam diferente.
Crítica
Um dos pilares do discurso de Divino Amor (2019), filme do cineasta Gabriel Mascaro, é a ressignificação de uma prática/ato para ela caber num discurso “terrivelmente evangélico”. Nele, a intercambialidade de parceiros sexuais deixa de ser “afronta à moral e aos bons costumes cristãos” e passa a ser parte de um "abençoado ritual de fertilidade". Portanto, o ato de transar com a esposa do vizinho ou com o marido da amiga deixa de ser uma atitude condenável e passa a ser digno de glorificação. Vital seria, então, o propósito motivador. E Medusa é uma espécie de irmão do longa de Mascaro não apenas porque Anita Rocha da Silveira também se vale da estética neon para mostrar uma assustadora distopia neopentecostal, mas também porque está em sua essência uma ressignificação parecida, neste caso a da violência. As atitudes reprováveis de espancar alguém, humilhar e rechaçar o pensamento diferente não podem ser derivadas dos ensinamentos de um Cristo que se compadecia dos perseguidos, certo? Pois, as garotas doutrinadas começam este longa-metragem exibido no Festival de Cannes de 2021 brutalizando uma jovem por ela supostamente ser “vagabunda e promíscua”. Além de espancar a desconhecida, as “Preciosas de Cristo” a expõe publicamente. E essa apropriação religiosa da selvageria também pode ser encontrada nos milicianos Soldados de Sião.
Em Mate-me Por Favor (2015), Anita Rocha da Silveira já tinha demonstrado interesse numa juventude especificamente atravessada pelas lógicas neopentecostais. No entanto, em Medusa esse elemento passa a ser o princípio mobilizador, a razão de ser de um filme esteticamente exuberante. As belas composições de quadro, as tomadas que insinuam a existência de componentes inquietantes, a maneira das personagens se movimentarem – como se compusessem uma manada despersonalizada nesse futuro moralmente apocalíptico – tudo isso está a serviço de uma crítica aguda e mordaz. Porém, em vez de partir de um realismo acachapante, a realizadora trabalha praticamente no extremo oposto, ou seja, hiperestilizando para denunciar ao seu modo essa escalada doutrinária e agressiva. A protagonista é Mari (Mari Oliveira), uma das “Preciosas de Cristo”, grupo de meninas orgulhosas de serem “belas, recatadas e do lar” e de zelarem selvagemente pelos preceitos bíblicos de submissão feminina. A agressividade com que elas repelem comportamentos e pensamentos distintos só não é mais cortante do que a noção implícita de que precocemente estão reproduzindo uma noção que privilegia o masculino na convivência. Dentro disso, a mulher precisa ser "perfeita", dominada por um modo de conduzir o mundo em benefício do homem. E a realizadora escapa bem de certas armadilhas.
Por exemplo, Anita não fica excessivamente presa à jornada de mudança de Mari. Esse trajeto funciona mais como catalisador da tomada de consciência coletiva que culmina num levante repentino. É como se as mulheres fossem pacientes em coma despertando de supetão. Ao largo de suas descobertas, curiosidades e da sucessão de autoflagelos comprados da igreja como formas de purificação, Mari sofre por não saber qual caminho seguir. Outro elemento que poderia ser utilizado banalmente é a recém-chegada àquele mundo. A cineasta não parte dessa figura bastante comum no cinema (o novato) para utilizar a curiosidade/ignorância como desculpa para expor didaticamente como as coisas funcionam. Voltando à protagonista, em dado momento, Mari entra em conflito com a melhor amiga, Michele (Lara Tremouroux), coadjuvante que merece comentários à parte. Esta vocalista do grupo das “Preciosas de Cristo” é uma zeladora que cuida do rebanho de submissas em formação. Ela ensaia colocar a amizade a perder quando desconfia que a companheira está aberta a uma nova realidade distante dos dogmas e das castrações. Talvez seja um pouco óbvio o conhecimento posterior de que essa aparentemente ferrenha serva de Deus na verdade esconde um turbilhão de pulsões e desejos "pecaminosos". Mas, se trata de uma tomada de posição: a repressão causa severas deformidades.
Medusa expande o apreço de Anita Rocha da Silveira pela gramática do cinema de horror, o entremeado com outras referências. Mari persegue uma lenda urbana. Em certo instante, o filme desenha a busca como a da jovem imprudente chegando perto demais da verdade – alusão ao Pecado Original e arquétipo presente em filmes adolescentes do gênero. Também como em Mate-me Por Favor, a realizadora brinca com outras convenções do cinema teen. As “Preciosas de Cristo” são versões terrivelmente evangélicas de Meninas Malvadas (2004), sobretudo em função da semelhança de Michele com as típicas líderes das mais populares nos longas colegiais estadunidenses. E essa apropriação inusitada está a serviço da amplitude de um olhar crítico. Em pouquíssimas partes do filme a cineasta sai desse universo neopentecostal, pois o contraste está posto com a realidade. A trilha sonora pop, o banho de neon e da saturação das demais cores predominantes (verde, vermelho), o desempenho do elenco, tudo isso é apresentado num percurso coerente e enigmático. No entanto, não é por qualquer surpresa ou mesmo um ponto de virada que essa produção sobressai, mas por sua personalidade ao satirizar seriamente os pensamentos que ameaçam se impor como sombras à sociedade. O sorriso da menina ao dizer que queimar a pecadora não é ruim, mas uma ode a Deus, é um gesto assustador. Idem as maquiagens e dissimulações que ocultam as brutalidades direcionadas cotidianamente às mulheres.
Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021
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