Sinopse
Mega Cena: Uma chance em 19 milhões. Para os nossos sortudos ganhadores, o sonho rapidamente vira pesadelo e suas vidas se despedaçam em um espetacular festival de humor ácido e fortes emoções. Selecionado para o Festival Varilux de Cinema Francês 2024.
Crítica
Segundo as probabilidades, é mais fácil ser atingido por um meteoro do que ganhar na loteria. Tornar-se rico do dia para a noite deveria trazer somente alegria aos felizardos, mas é bem o contrário disso o que vemos nas quatro histórias de Mega Cena, comédia selecionada para o Festival Varilux de Cinema Francês 2024. Todas as tramas falam dos efeitos colaterais negativos de ter acertado os números “mágicos”. Dinheiro não traz felicidade. Essa é a sentença implícita nos contos moralistas que apresentam pessoas entrando em declínio justamente ao terem as suas apostas contempladas pelo destino. A primeira das tramas é protagonizada pelo casal às turras durante uma viagem de férias rumo à casa da mãe dele. Louise (Audrey Lamy) está descontente pelo fato de Paul (Fabrice Eboué) ser um homem pobre e sem atitude, o que obriga a família sempre a optar pelo mais barato e ter poucas ambições. No auge da discussão, que conta com os filhos de testemunhas no banco de trás, surge a informação de que eles ganharam na loteria, mas têm 10 minutos para se apresentar num posto autorizado a fim de reivindicar a mudança de vida. Começa uma verdadeira corrida contra o tempo, em meio à qual as animosidades dão lugar à euforia. A esposa que antes xingava o marido agora faz declarações de amor como aquelas que provavelmente ele não ouvia há anos. A hipocrisia vem à tona de leve.
O que acontece nessa primeira parte é uma sucessão de trapalhadas que leva Paul à cadeia. A moral da história é: tudo o que você deseja tem preço. Aliás, as partes de Mega Cena acabam sempre com uma lição, por isso o carimbo de moralista utilizado no começo do texto. Acontece o mesmo em seguida, quando vemos Julie (Pauline Clément) ganhando dez milhões de euros e esbarrando num homem lindo que se envolve com ela sexualmente. Influenciada pela amiga desconfiada das boas intenções do bonitão providencial, a protagonista decide colocar à prova as pretensões do sujeito para se certificar que ele não está apenas interessado na bolada. Assim como fazem na parte anterior, os Romain Choay e Maxime Govare lidam com o acaso, com a ideia do destino, a fim de criar suspense. Será que o rapaz é realmente um bem-intencionado galanteador que completará a felicidade de Julie (ou seja, confirmando a sua maré de sorte) ou não passa de um vigarista? Os realizadores não são muito eficientes na hora de gerar essa dúvida, pois alternam burocraticamente entre uma possibilidade e outra de resposta. Quando querem que o homem pareça um golpista, atribuem a ele todas as características de um. Quando querem fazê-lo parecer um apaixonado genuíno, o enxergam como príncipe. Não há nuances. Com isso, a dúvida vira uma bolinha de pingue-pongue sendo arremessada de um lado ao outro da mesa.
A terceira história de Mega Cena é a dos terroristas árabes preparando um atentado a bomba em Paris. Levados a repensar o ator criminoso após descobrirem que um deles acabou de ganhar na loteria, os felizardos ficam num dilema entre continuar a missão “sagrada” ou simplesmente enriquecer. Se a trama anterior acaba com um “o amor é cego”, esta termina com outra lição do tipo moralista, desta vez como se nos dissesse “depois de determinado ponto, o pecado não é mais perdoável, não há como voltar atrás”. Todos enredos do filme são marcados por uma ironia que não chega a ser cortante e por um humor sombrio do tipo bem comportado, daquele que não mobiliza e tampouco gera desconforto. Voltando à fração dos árabes, ela acaba reforçando estereótipos raciais e religiosos, mesmo aparentemente tratando apenas de uma piada com o poder persuasivo do dinheiro. Por que Romain Choay e Maxime Govare não colocaram outros grupos prontos a explodir o metrô, uma vez que o fato de eles serem islâmicos tem pouquíssima importância? Se ao menos os dois explorassem um impasse moral dentro de uma perspectiva religiosa, mas nem isso acontece. Então, toda a ladainha sobre virgens e demais recompensas num além-vinda é somente uma forma de reforçar estereotipias que têm implicações graves – especialmente numa sociedade como a francesa, tomada por controvérsias sobre imigrantes.
A quarta história de Mega Cena é a mais divertida, ainda que siga os princípios moralistas do “o pecado será punido, hora ou outra”. Nela, um idoso morre assim que descobre a sua sorte na loteria. Cinco trabalhadores da casa de repouso onde o defunto morava se apropriam do bilhete e ficam milionários. No entanto, eles começam a morrer misteriosamente, como se estivessem sendo vítimas de uma maldição. O mais interessante nem é a discussão a respeito da ganância e do ceticismo levando personagens a correrem riscos, mas a observação de como uma dessas pessoas está disposta a cruzar outros limites éticos e morais para se dar bem. Romain Choay e Maxime Govare novamente não são eficientes na tentativa de criar dúvidas, sendo bem mais felizes ao arrematar com ironia esse conto também encerrado como uma clara “moral da história”. E, por fim, reforçando as estruturas puritanas do filme, há o retorno à primeira das tramas, aquela envolvendo o pai de família levado a atitudes criminosas a fim de finalmente dar algum tipo de orgulho à sua esposa. No momento em que o sujeito iria ser libertado e ter a possibilidade de gozar o prêmio, ele é chantageado pelos colegas da cadeia e um dilema se impõe à sua esposa: se desfazer do dinheiro e salvar a pele do marido (ficando ainda mais pobre do que antes) ou arriscar a vida do amado e permanecer rica? Mais uma vez, o moralismo vence.
Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês em novembro de 2024.
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