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Martha leva uma vida bastante discreta – ou assim ela imagina. A jovem, de idade indefinida entre 20 e 30 anos, sai pouco de casa, e quando se ausenta, é para ir ao trabalho que executa como faxineira em uma fábrica nas redondezas. Um tanto acima do peso, é daquelas pessoas que passa sempre de cabeça abaixada, torcendo para não ser percebida. Mas há quem se de conta de sua presença. E isso pode ser uma dor de cabeça, não apenas para si, mas também aos outros. Afinal, quem tanto apanha, não apenas anseia para que essa dor tenha fim. Segundo o diretor e roteirista belga Karim Ouelhaj em Megalomaniac, há aqueles que já se acostumaram com essas punições – que, de maneira um tanto distorcida, podem até mesmo se julgar merecedores – que buscam expiá-las através do compartilhamento, dando sequência a um círculo de castigos e sofrimentos. É uma corrente do mal, que iniciou-se sabe-se lá quando e talvez nunca chegue a ter um fim. Essa jornada que o filme proporciona sabiamente trata de emular tais percepções mais pela ambientação e pelo que exibe do que por meio de discursos ou exemplos batidos. Uma diferença pequena, mas eficiente em enaltecer o resultado.
Segundo o dicionário, megalomaníaco é “aquele que tem fascinação por tudo que é exagerado, atitude popularmente chamada de ‘mania de grandeza’, consequência de quem sofre de algum tipo de transtorno de personalidade com delírios de poder e onipotência, fantasiando situações nas quais ele é exageradamente reverenciado”. Este entendimento se faz importante para acessar a lógica dos atos executados pela protagonista vivida por Eline Schumacher. Conhecida até então por pequenas participações em séries como The Break (2018) e Good People (2022), dessa vez surge como a responsável por praticamente todas as ações e seus desenrolares vistos em cena. É nela em que as atenções se concentram, e não sem motivo. O que esconde essa mulher? E por quê aceita os abusos aos quais é sistematicamente submetida? Uma relação de forças, submissões e excessos se desenrola no seu interior diariamente, e cada oportunidade que encontra de vingança é como uma válvula de escape para o tormento ao qual se acostumou. A vítima faz também as vezes de carrasco.
Seria o tapa recebido uma desculpa para a violência que a mesma promove? Martha se esconde por trás do uniforme e de seus aparelhos de serviço, como baldes e vassouras. Mas isso não é suficiente para mantê-la segura ou, ao menos, invisível. Será ao limpar os banheiros, durante o turno noturno, que Luc (Pierre Nisse, visto em Mulheres Armadas, Homens na Lata, 2019) irá reparar na sua postura dissimulada, como se estivesse o tempo todo tentando não ser notada. Assim, como o bully que tanto levou na cabeça e busca desesperadamente por uma oportunidade de revidar, nela concentrará suas forças – e seu deboche, e suas agressões, e seu desrespeito. As sessões de estupro passam a ocorrer de modo sistemático, com a conivência de colegas e até de superiores, em um misto de aceitação, desprezo ou incapacidade de alterar a ordem das coisas. Seria de se imaginar, então, que a garota estaria sozinha, perdida e abandonada à própria sorte. Mas não é o que acontece. Há exemplos que a ensinam, ainda que por meio de caminhos tortos, a como lidar com essa situação.
Mais do que a assistente social que a visita de tempos em tempos, ciente de sua fragilidade, mas sem muito o que fazer diante de tantas carências, está no irmão, que passa as noites nas ruas e os dias em seu quarto, o amparo no qual ela, enfim, encontra algum tipo de conforto. Felix (Benjamin Ramon, de Doce Obsessão, 2018) é um sedutor selvagem, que não oferece às suas vítimas a mesma complacência com a qual reage diante de uma suposta imobilidade da irmã. Ele percebe nela fragilidades, mas reconhece também que basta criar o contexto específico para que sua voracidade se manifeste. Eis, enfim, o auge do concerto orquestrado por Ouelhaj: por mais que o visual sombrio, a trilha sonora perturbadora e uma direção de arte cadavérica sirvam para compor uma descida aos infernos, aquela no centro deste quadro está apenas à espera do momento exato para revelar suas garras. O mundo pode ver nela uma coitada, mas está em sua crença de se imaginar o contrário dessa percepção a energia que a faz levar um dia após o outro, aguardando pela chance de dar o revide que há tanto tempo vem nutrindo.
Como se vê, não é fácil a vida levada pelos personagens de Megalomaniac. Ninguém neste cenário é particularmente bom, e aqueles que mais se aproximam desse conceito (a assistente, talvez? Afinal, por mais que esteja apenas fazendo o que dela se espera, há também uma vontade real em ajudar) também não serão poupados no balanço das horas. Aos demais, aqueles que de fato se encontram no centro dos acontecimentos, a disputa se dará entre o roto e o rasgado, entre o ruim e o pior, como se todos estivessem além de qualquer tipo de salvação. Tem-se, enfim, um pesadelo, triste pelas razões que até ele o levam, e sádico pelo tanto que explora e pelas desgraças que ousa colocar em evidência. E se no saldo final ninguém se salva, estará nessa experiência compartilhada com a audiência tanto causa como razão de tamanha miséria, sentimento indeciso entre o contento por se reconhecer melhor do que aquele em sua frente, como também o desespero por identificar nesse um ser como qualquer outro, seja vizinho, conhecido ou até mesmo o espectador, pego de surpresa por ver em si muito daquilo que condena. O mal, como se vê, está ao alcance de todos.
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