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Sinopse

Jessica está de viagem na Colômbia para visitar a irmã hospitalizada. Certo dia, acorda com um forte estrondo nas redondezas, que ninguém mais parece ter ouvido. Perambulando pela cidade, ela continua escutando o barulho. Jessica inicia uma investigação pela origem do fenômeno, entre a tecnologia moderna, a arqueologia e os encontros com anônimos.

Crítica

Qual é a primeira memória sonora que você guarda em sua vida? Uma canção dos pais quando criança, o barulho das conversas, do telefone, de algum programa de televisão? Como buscar por um som carregado de valor afetivo? Esse é o principal desafio de Jessica (Tilda Swinton), protagonista deste drama, e de Apichatpong Weerasethakul, na função de diretor. A visitante britânica na Colômbia desperta com um forte estrondo nas vizinhanças. Ao questionar vizinhos e amigos, ninguém escutou o barulho. Ela tem certeza daquilo que ouviu e que continua a ouvir em solitário. “Acho que estou ficando louca”, confessa a uma amiga. Face a um especialista em mixagem de som e efeitos sonoros, tenta descrever a qualidade deste estímulo: seria como o som de uma bola de concreto caindo sobre um fundo metálico coberto de água. “Entende?”, pergunta. Mesmo que encontre o vocabulário exato para apresentar o fenômeno, nada lhe garante que encontrará sua origem. Para o cineasta, o desafio possui outra natureza: que imagens correspondem a um som abstrato, indefinido, não-referencial? Os espectadores podem escutar exatamente aquilo que Jessica escuta, porém com qual imagem deveria se associar? O criador possui uma tela em branco a partir da qual pode imaginar livremente. Em se tratando um som único, o referencial também pode sê-lo.

A jornada passa a investigar outras formas de memória afetiva, histórica e natural. Em sua jornada, a heroína passa por museus, galerias de arte, escavações arqueológicas com ossos de esqueletos milenares, flores preservadas em refrigeradores, pedras capazes de conter vibrações com “impressões digitais” do que viveram. Ela se confronta à irmã, no hospital, que se esqueceu de sua última visita devido à alta dosagem de medicamentos, e depois fracassa na tentativa de encontrar o simpático Hernán (Juan Pablo Urrego), que lhe ajuda na composição artística do som escutado. Ele teria sido apenas um fruto da imaginação da estrangeira? Durante uma travessia pelas avenidas da cidade, o pneu de um ônibus estoura, assustando os transeuntes. A maioria deles somente busca a fonte de tal ruído, no entanto um rapaz de agacha e sai correndo, certo de que se tratava de um tiro. Para ele, este som está associado a outras narrativas, distintas e pessoais. No início, conta-se o trauma profundo pelo episódio de um cachorro abandonado após um atropelamento. Passadas algumas cenas, os personagens envolvidos no caso se esqueceram do ocorrido, e a importância afetiva do caso também se dissipou. A lembrança afeta a percepção do mundo, e por consequência, o próprio mundo. 

Para a mulher incapaz de lembrar, vagando a esmo pela localidade desconhecida, o roteiro generoso oferece um homem incapaz de esquecer. Entre em cena outro Hernán (Elkin Díaz) - ou seria o mesmo, transformado? -, evocando com sutileza o fato de pertencer a uma espécie inumana que não sonha. Enquanto Jessica deseja ir de encontro ao desconhecido com curiosidade ímpar, seu interlocutor confessa evitar filmes e histórias alheias, porque nunca se esquece do que viveu, e acredita que a sociedade contemporânea possui narrativas em excesso. Os dois se completam de modo fusional, e aos poucos, descobrirão uma relação mais profunda. É curioso o modo como elementos mágicos surgem nas narrativas de Weerasethakul, sem romper com o naturalismo contemplativo. Assim, atinge um efeito metafísico, decorrente de conexões humanas apartadas da espiritualidade compreendida enquanto tal - vide a ridícula cena com a médica cristã sugerindo repouso e reza. Jessica e Hernán se relacionam numa dimensão fusional, inexplicável a ambos. Unem-se pela sensibilidade próxima e por uma cumplicidade imediata, algo que poderia soar acessório na maior parte dos projetos, porém que se justifica dentro do contexto onde ambos aparentam existir sozinhos, sem pessoas ao redor.

Memoria apresenta com surpreendente trivialidade a empatia pelas diferenças e a convivência harmoniosa de grupos afastados. Jessica soa integrada em Medellín, num local onde o espanhol apenas razoável lhe parece suficiente. Ela encontra indivíduos abertos a conversa, sem euforia nem estranheza. A câmera demonstra prazer em registrar rostos observando outros rostos, ou então corpos escutando alguma canção comovente. Em determinado instante, a viajante escuta a última versão de seu ruído em fones de ouvido. O espectador é privado desta sensação, porém terá o expressivo rosto de Tilda Swinton para compreender o impacto da gravação naquela que o escuta. Dentro do conservatório, jovens estudantes assistem a um pequeno concerto, e durante minutos, teremos apenas a reação no semblante destas pessoas para deduzir a origem do som e supor o movimento dos artistas. No primeiro contato com o mixador de som, Jessica observa o jovem que observa algo à sua frente. Eles escutam a mesma canção, a partir de pontos de vista diferentes - técnico, no caso dele, e amador, no caso dela. O diretor propõe um curioso estudo de percepções, sem hierarquizar estas leituras nem julgá-las moralmente. A descrição dom som “terroso, redondo, denso” é acolhida com respeito e ternura dentro do universo sinestésico.

A revelação da origem do estrondo poderia se converter numa recompensa ao espectador, ou então uma forma de linearidade dentro da narrativa etérea. No entanto, Weerasethakul faz do suposto encerramento do dilema o reinício do mistério, através de uma simbologia não explicada de modo clássico. Entre seus trabalhos mais existencialistas e humanistas (Cemitério de Esplendor, 2015; Mal dos Trópicos, 2004) e aqueles mais cerebrais e conceituais (Síndromes e um Século, 2006; Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, 2010), o diretor se aproxima desta última vertente para Memoria. O contato humano e o entendimento do mundo enquanto processo, em tempos dilatados, estão presentes, no entanto, eles partem de uma articulação provocadora em sua linguagem cinematográfica. Confiante em seus recursos e no impacto destes, lança novos desafios a si próprio, voltado desta vez à representação sonora e à articulação com a imagem. Ao final, promove uma obra de sentidos que se expandem, lançando novas perguntas ao invés de fornecerem respostas. Constrói-se uma experiência que, a exemplo do estrondo de Jessica e da lembrança de Hernán, deve perdurar após a sessão, completando-se e adquirindo sentidos diversos a partir da bagagem pessoal de cada espectador.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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