Crítica
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Crítica
O progresso cobra seu preço. Esta máxima é frequentemente utilizada por diversos governantes para justificar atitudes prejudiciais a certas comunidades. “Sacrificar alguns poucos em benefício de muitos”, dizem os eleitos que autorizam obras faraônicas como a da represa que inundou a cidade de Jaguaribara, no interior do Ceará no começo dos anos 2000. Memórias da Chuva acompanha um de tantos episódios em que esse discurso do “não podemos brecar o progresso” cobra um preço alto demais às pessoas que, dentro dessa retórica bem capenga, são vistas então como “inimigas do futuro”. O cineasta Wolney Oliveira conta a história de moradores que foram desalojados porque, supostamente, era preciso garantir uma fonte de energia beneficiadora de um sem número de conterrâneos. Esse tema do apagamento urbano/territorial está muito em voga nas últimas décadas. Toda a obra de Kléber Mendonça Filho fala sobre isso, a respeito da importância das raízes e do componente afetivo dos cenários. Uma vez derrubada uma parede da casa da infância, parte dessa infância se vai embora, morre como referência. O cineasta chinês Jia Zhangke também construiu a sua carreira em torno de variações melancólicas desse mesmo tema, ponderando cinematograficamente como atender o futuro nem sempre deveria significar o soterramento do passado. Em Jaguaribara muito se perdeu com essa sua submersão.
O documentário utiliza como princípio narrativo entrevistas com moradores da velha e da nova Jaguaribara. Desfila pela telona gente falando com saudade dos banhos de rio, lembrando com semelhante nostalgia o caráter mais provinciano da localidade que permitia colóquios entre vizinhos num fim de tarde e a criação de um sentido de unidade comunitária – em tudo diferente do novo endereço, bem maior e que impõe determinados ritmos e protocolos difíceis de serem prontamente assimilados, sobretudo pela fatia mais idosa da população. São testemunhos emocionados, indignados e tristes de gente que precisou deixar uma vida para trás, de moradores então acostumados a certo tipo de rotina e que tiveram de larga-la por conta de imposições governamentais. Mas, Wolney Oliveira também utiliza como elemento do discurso as cenas feitas na cidade que desapareceu, criando um efeito interessante de fricção e tensionamento entre as imagens antigas (com texturas completamente diferentes, num tempo em que a alta definição não era padrão) e as recentes. O resultado é um diálogo fecundo entre passado e presente. Evidentemente, sempre levando em consideração que estamos falando de duas realidades distintas filmadas, filtradas por olhares com seus interesses e enviesamentos. O saldo dessa comunicação é um fortalecimento da melancolia como tom predominante da trama.
Wolney Oliveira não perde de vista o teor da denúncia nesse filme de caráter humanitário. Sim, pois os causos que enfatizam a voracidade de um progresso exclusivista são interessantes, justamente, pelas naturezas humanas nele refletidas. Especialmente na segunda metade do documentário, sobressai a correlação entre o destino fatídico dos moradores de Jaguaribara e as intenções políticas que nem sempre levaram em consideração todos os fatores envolvidos numa operação tão complexa quanto o desaparecimento de uma cidade. O então governador do Ceará, Tasso Jereissati, é encarado como uma espécie de símbolo da classe que se comunica com os problemas do povo de modo distanciado. Para tanto, ele é mostrado somente em comícios, em ocasiões oficiais nas quais não está diretamente em contato com o clamor dos populares que lutaram até o último momento para não serem desenraizados. As cenas mais tristes de Memórias da Chuva são aquelas, de resgate, em que vemos as pessoas desesperadas diante da iminência da mudança, culminando com o homem desolado encarando solitariamente o rio do qual não será mais vizinho. Todo esse comentário a respeito dos efeitos do desterro é muito forte e dá visibilidade à subjetividade daqueles que foram vítimas das variações de um progresso não tão afeito a atender única e exclusivamente as demandas das pessoas envolvidas.
O Calcanhar de Aquiles de Memórias da Chuva está no momento de comparar a antiga com a nova experiência comunitária. Certamente desejando criar um cenário complexo, Wolney Oliveira dá voz a personagens que não sentem muita saudade da antiga Jaguaribara, que inclusive acreditam estar melhores na cidade que almejava ser uma Brasília no interior do Ceará. Por um lado, esses depoimentos tornam o panorama menos homogêneo, mas, por outro lado, criam um ruído considerável nessa proposta de encarar o progresso como eufemismo para certas práticas políticas que nem sempre têm o povo como principal beneficiário. Felizmente, Wolney retoma o bom caminho ao escancarar a falácia de que a barragem seria de fundamental importância para garantir o abastecimento de energia à região, além de ser a pedra fundamental do desenvolvimento da psicultura nas cercanias. O realizador é eficiente no desenho dessa obsolescência, assim digamos, daquilo que o governo tratava como incontornável – pois não se levaram em consideração as características da bacia hidrográfica da região e tampouco o fato de que é necessário qualidade hídrica para a existência de um negócio envolvendo seres vivos. No fim das contas, o longa-metragem acerta em cheio ao resgatar uma história que se soma a outras tantas para revelar esse mal estar na civilização ávida por um progresso às vezes opressor.
Filme visto no 33º Cine Ceará, em novembro de 2023.
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