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Sinopse

Nana cuida sozinha das netas e do bar herdado pela família. Um dia, descobre uma garota em situação de rua, e passa a investigar sua história: ela teria fugido de casa? Haveria alguém procurando por ela? Enquanto isso, leva a menina para conhecer suas netas.

Crítica

Além de ser um filme sobre a infância, Memórias de Quintal (2019) é um filme infantil. No entanto, as duas categorias são muito diferentes: é possível representar as vivências das crianças por um prisma adulto, ou dentro de um filme voltado ao público maduro - alguém diria que 4 Bilhões de Infinitos (2020) ou Baile (2019) são produções infantis apenas por terem meninos e meninas em papéis centrais? O curta-metragem capixaba parte de uma compreensão particular do cinema apropriado ao público familiar. Estima-se que seja uma obra leve, repleta de música, belas mensagens e importantes valores. As diretoras Lorena D’Ávila e Simony Leite Siqueira privilegiam a moral e os sentimentos, algo perceptível desde a cena inicial, quando crianças correm pela cidade enquanto a montagem alterna alegremente entre os pés correndo com chinelos e o trem chegando ao fundo. Não há motivo aparente para tantos cortes, exceto a vontade de tornar o ritmo mais dinâmico. Já a trilha sonora sugere uma aventura fabular. Desde o princípio, a obra valoriza a aparência de realismo fantástico, cujo teor de magia seria apropriado para dialogar com os pequenos, e sobretudo com as pequenas, nesta obra dominada por garotas e mulheres. Ao longo do percurso, o roteiro confronta uma senhora bondosa e trabalhadora à presença inesperada de uma menina em situação de rua. A trama pode ser compreendida enquanto pequena crônica do acolhimento.

O problema se encontra no retrato da miséria em cor-de-rosa. É muito difícil acreditar que Rita esteja sobrevivendo sozinha na rua, seja pelas roupas novas e limpas, pela mochila bonita ou pela falta de traquejo com o espaço urbano. Para construir a imagem de uma menina pobre, a direção de arte se contenta em soltar o cabelo da jovem heroína, como se isso bastasse à caracterização. “Eu tento me defender. É só não ter medo”, explica a pequena às outras garotas a respeito do método de sobrevivência no caos urbano. Ora, alguém consegue acreditar que a heroína tenha enfrentado a fome, a solidão, o abandono, o passado de violência? As atrizes mirins refletem o trabalho insuficiente de direção de atores. Quando se confia cenas complexas a esta faixa etária, é fundamental estabelecer uma dinâmica de jogo através da qual o elenco se torna capaz de interiorizar os conflitos e adaptar as falas à sua embocadura. Em contrapartida, no filme, as crianças são encarregadas de diálogos escritos demais, estranhos à oralidade e ao mundo infantil. É evidente que falas como “Ah, sim, desculpe”, “Ai, eu estou apaixonada!”, “Não me ouviu? Poxa!” e semelhantes foram escritas, porém jamais compreendidas organicamente por elas. As interações se tornam artificiais: quais crianças brincam com cangas desta maneira na praia, ou giram com os braços abertos para acolher a liberdade dos ventos e da natureza?

Estas escolhas decorrem do fato que Memórias de Quintal romantiza a juventude e, pior ainda, a desigualdade social. O discurso foge à responsabilidade de conhecer a história e os sentimentos de Rita, descrita sempre à distância, por terceiros. A garota nunca controla o ponto de vista. Além disso, sua sina se transforma num infortúnio lamentável, sem culpados - nem a família, nem o Estado. É improvável que qualquer pessoa tendo atravessado semelhante situação de mendicância possa se identificar com este retrato leve e otimista. O curta-metragem jamais demonstra interesse em analisar as condições da exclusão social, apenas utilizá-la enquanto motivação para o princípio da caridade. O recurso se assemelha à fala de mães ordenando que os filhos terminem a comida no prato, afinal, “tem muitas crianças passando fome na África”. O discurso provém da burguesia e a ela se destina, enquanto utiliza a miséria distante enquanto forma de exotismo, ou motor para tornar os protagonistas ainda mais virtuosos. A surpreendente conclusão tampouco ajuda a inserir este tema urgente dentro de uma lógica plausível, pelo contrário - o desfecho rompe por completo com o realismo.

O projeto possui nobres intenções, que convém sublinhar: o protagonismo feminino, a valorização de famílias monoparentais, a reunião pacífica entre o cristianismo e as religiões de matriz africana. Entretanto, a anedota pela avó para educar as netas soa no mínimo traumática. A fala sobre a “roda de caminhão passando em cima da cabeça dele” corresponde a uma pedagogia contraproducente, ainda que a narrativa a apresente como exemplo de ternura familiar. Em paralelo, a montagem fragmenta cenas e pontos de vista em excesso; a captação de som direto enfrenta dificuldades no bar, e principalmente dentro da cozinha, e a trilha sonora faz uma aposta arriscada, incluindo nada menos do que Express Yourself, de Madonna - houve cessão de direitos autorais para esta sequência? Mesmo assim, estes são detalhes perto da mensagem anacrônica segundo a qual toda criança pode ter uma vida boa contanto que se esforce, aproveite as oportunidades, seja corajosa. A direção estima efetuar uma defesa da poesia ao incluir letreiros como “A lama levou alguns de seus sonhos, mas não conseguiu conter o seu destino”. No entanto, apenas desresponsabiliza a sociedade pela condição de Rita.

Filme visto online no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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